A consolidação do estado policialesco

Cassio Felippo Amaral

Temos observado, nos últimos anos, a publicação de diversas normas que, sob o pretexto de se conferir maior celeridade aos milhões de processos que atravancam as prateleiras do Poder Judiciário -que vão desde simples ações de despejo por falta de pagamento de aluguéis até questões graves e profundas -, vêm mudando radicalmente os procedimentos legais aplicáveis aos feitos.

Muitas delas, entretanto, não surtirão o efeito desejado, parecendo-nos, na verdade, apenas outras daquelas atitudes demagógicas que iludem a sociedade e impõem aos Advogados, aos Promotores de Justiça e aos Juízes verdadeira pressa na elaboração, condução e decisão das ações judiciais, desconsiderando totalmente a questão material posta em discussão no processo, pois o que parece importar, na realidade, é a diminuição estatística do número de ações sob responsabilidade da Justiça Brasileira, como se isso representasse a verdadeira celeridade processual – direito fundamental de qualquer brasileiro – almejada por todos nós.

Acontece que, ao que se pode observar, a real intenção enrustida em todas essas alterações na legislação processual é a de diminuir sensivelmente o acesso da população à Justiça, pois, com a redução da quantidade de recursos colocados à disposição daqueles que venham a litigar judicialmente, ocorrerá a perpetuação de decisões monocráticas que, muitas vezes, distanciam-se da verdade fática e, ao invés de promover a paz social, acirram os ânimos entre as partes contentoras.

Desnecessário, aqui, citar exemplos dessa triste realidade que se impôs à sociedade brasileira, já que, diuturnamente, a mídia tem se encarregado de tão lamentável tarefa.

Desta vez, com a publicação da Lei Federal 12.234, de 05 de maio de 2010, que alterou dispositivos contidos nos artigos 109 e 110, do Código Penal Brasileiro, que tratavam da prescrição retroativa na fase anterior à propositura da ação penal, em que pese parecer caminhar em sentido contrário à tão almejada celeridade processual, representa, na verdade, mais um ato legislativo para consolidação do estado policialesco. Com efeito acompanhando a ideologia da perpetuação de decisões quase que únicas e individuais, pouco importando se estão corretas e de acordo com o conjunto normativo vigente, mormente com relação à nossa Carta Magna, franqueia à polícia judiciária a possibilidade de eternizar o procedimento do inquérito policial, dependurando, sobre a cabeça da pessoa averiguada ou indiciada, uma espada que, hoje, amanhã ou nunca, poderá ser solta e atingi-la diretamente.

A Lei 12.234/10, além de se tratar de verdadeiro atestado da total desestruturação e sucateamento de nossa polícia judiciária, sistematicamente castigada com a ausência de recomposição de seus Quadros e com a drástica redução do orçamento para aquisição de meios e equipamentos, também serve para atender a pretensões totalmente contrárias ao interesse público.

A esfarrapada desculpa de se permitir aos órgãos de investigação policial maior tempo para elucidação de crimes revela, na verdade, a possibilidade, para o crime organizado, de “administrar” o trâmite do inquérito policial, eximindo seus agentes da possibilidade de se verem submetidos a uma ação penal, esta sim, ainda sob a pressão do instituto da prescrição, sacramentando a tão temida impunidade do agressor.

Serve, também, referida Lei, para enaltecer e fortificar agentes policiais que assumem o papel da personagem do “Inspetor Javert”, cuja religião era a lei, que devia ser aplicada a qualquer custo, pois era a lei que distinguia os homens bons dos maus.

Ainda, como é sabido, dita Lei abrirá a possibilidade de agentes policiais corruptos valerem-se da total ausência de prescrição para extorquirem, indefinidamente, alguns indivíduos que se vejam como averiguados ou indiciados em inquérito policial.

Sinceramente, não é esta a atitude que a sociedade espera de seus representantes eleitos. Não será este o caminho para que nossa polícia judiciária possa trabalhar com mais eficiência e eficácia.

O que deve ser feito, como já se sabe há muito tempo, é a retomada do aparelhamento dos órgãos policiais, é o pagamento de salários dignos aos agentes policiais, é a busca pelo preenchimento dos claros que a cada dia só fazem aumentar, enquanto que a Administração Pública nada faz para reverter esse caótico estado de coisas que atinge a Nação.

E nós, integrantes da sociedade, também culpados porque aceitamos calados a consolidação do estado policialesco, temos o dever moral e cívico de concitar nossos representantes a não mais aprovar tão absurdos dispositivos legais que vêm, paulatinamente, retirando de nós mesmos a possibilidade de acesso à Justiça e à duração razoável do processo, aqui também incluídos os procedimentos administrativos e preparatórios para atuação da Justiça Pública.

Não é admissível que nenhum partido político, nenhum órgão de classe, enfim, nenhuma organização da sociedade civil tenha, até o presente momento, adotado providência junto ao Supremo Tribunal Federal, requerendo o decreto de inconstitucionalidade da Lei Federal 12.234/10, com o conseqüente restabelecimento da prescrição retroativa, pois trata-se este instituto de verdadeiro e efetivo instrumento de controle da atividade policial judiciária.

Cássio Felippo Amaral é advogado especialista em Direito Ambiental pela Universidade de São Paulo. É sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados e dirige a Área de Direito Penal e Direito Penal Militar.
E-mail: cassio@pinheiropedro.com.br


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