A Constituição vale ou não?

José Renato Nalini

José Renato Nalini é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e corregedor-geral da Justiça. Foto: José Geraldo Oliveira

José Renato Nalini é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e corregedor-geral da Justiça. Foto: José Geraldo Oliveira

A Constituição Cidadã de 5.X.1988, que acaba de completar 24 anos, consagrou o meio ambiente como um direito fundamental. O constituinte conferiu a esse bem da vida um status peculiaríssimo. Teve a coragem de explicitar que ele é titularizado por uma comunidade difusa de ainda não nascidos. Não se cuida de mera expectativa de direitos, mas de direito fundamental efetivamente assegurado. É dever dos atuais viventes exercerem a tutela da natureza e dos recursos naturais em benefício das futuras gerações.

Um texto de tamanha beleza, qual o contido no caput do artigo 225 do pacto federativo não pode significar uma proclamação retórica, sem consistência jurídica. A Constituição vale. Precisa valer. É o fundamento de validade de toda a normatividade positivada na República. A integralidade do ordenamento vigente, ou é compatível e se alicerça na Constituição, naquilo que ela explicita ou naquilo que dela se extrai ou se encontra implícito, ou não existe como vontade legal.

Pois causa estranheza que leis produzidas contrariamente à vontade fundante possam ter abrigo nesse universo concebido para formar um todo harmônico. É o que ocorre com a nefasta revogação do Código Florestal, uma lei que em 1965 substituiu outra normativa, datada de 1934, ambas geradas num consenso entre agricultores e produtores de direito novo. Àquela altura, não se falava em ecologia. Mas os que viviam do campo detinham sabedoria. Não ignoravam que o sacrifício da floresta significa rápido depauperamento da fertilidade, da biodiversidade, do clima e de todo o retorno que o adequado trato da terra pode propiciar àquele que a explora sem dizimá-la.

Já no século XXI, com tantos sinais de exaustão do planeta, o desenvolvimentismo reducionista entendeu que a mata em pé de nada serve. A cupidez aliou-se à ignorância e foram frustrados os apelos emitidos por toda a comunidade científica. Não houve uma voz autorizada a se posicionar a favor da revogação da lei de proteção da floresta. Cientistas, pensadores, porta-vozes da sensatez foram ignorados. Prevaleceu a visão estreita de quem pretende acabar com as reservas, plantar cana, depois soja, que será substituída pelo pasto e, finalmente, pelo deserto.

O que dirão os nascituros, quando tiverem de se servir de máscaras porque o oxigênio será insuficiente, quando não houver mais água, no dia em que árvore será uma reminiscência museológica? A quem debitar esta fatura cruel, se os atuais detratores já estarão fazendo companhia à terra que não hesitaram em devastar?

Daí a indagação que a lucidez tem o direito de fazer ao poder que comanda esta República: uma Constituição vale ou não? Ela vale por inteiro? Ela precisa ser respeitada? Se a resposta for positiva, não haverá como evitar que o princípio de vedação de retrocesso lance ao depósito das temeridades esta lei maléfica.

Se isso não acontecer, reconhecer-se-á inteira razão a quem afirmou ou teria afirmado que o Brasil não é um país sério. Que chegou ao declínio sem ter passado pelo ápice. Que é pretensioso nas proclamações bombásticas, mas que ainda é a terra em que existem leis que pegam e leis que não pegam. A começar da própria Constituição da República.

José Renato Nalini é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e corregedor-geral da Justiça


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