CALÇADAS, PRA QUE TE QUERO?

O DESPREZO DOS GESTORES MUNICIPAIS PELAS CALÇADAS DO SISTEMA VIÁRIO PÚBLICO CARACTERIZA A EXCLUSÃO SOCIAL NO AMBIENTE URBANO

Pedestres vítimas do concreto mal colocado na calçada da Avenida Moderna, em Manaus -AM

Pedestres vítimas do concreto mal colocado na calçada da Avenida Moderna, em Manaus -AM

 

Por Antenor Pinheiro

A despeito de constar da Constituição Federal (CF) que a lei é igual para todos, e o direito de ir e vir o mais festejado de seus preceitos, na verdade não é isto o que experimentamos na rotina quando a questão é a mobilidade das pessoas nas calçadas das cidades brasileiras. Permanece como tormento o grave passivo nacional a respeito, e o que constatamos são cidades cada vez mais embrutecidas nas suas opções de ir e vir penalizando, sobretudo, a população menos protegida econômica e socialmente.

Neste contexto, o que tinha de ser igual para todos no ordenamento jurídico vigente, não passa de letra morta; e o sagrado direito de se locomover a pé com segurança e conforto, mera ilusão. O produto que emerge desta contradição é a exclusão de consideráveis parcelas da população que se movimentam no ambiente urbano. E o mais elementar jeito de ir e vir, que é o modo a pé, o único da escala humana que nos permite o contato social direto, mantém-se sacrificado por absoluto desprezo das autoridades. É o coletivo sucumbido ao modo individualista de vivenciar as cidades – a derrota precoce da urbanidade.

O direito à cidade é tema recorrente nas academias, parlamentos, eventos e gabinetes governamentais das três esferas de governo, mas sua ascensão é desprezada quando a providência da ação é requerida. É o que ocorre com as calçadas dos sistemas viários públicos das cidades, merecedoras das mais elogiáveis iniciativas e presença obrigatória nos discursos oficiais quando a questão tange a equidade do uso dos espaços de mobilidade, no entanto esquecidas quando se decidem as ações governamentais mais elementares e as diretrizes orçamentárias destinadas a cada uma delas.

Ciclovia substitui calçada (ausente) no Parque Arariba -SP

Ciclovia substitui calçada (ausente) no Parque Arariba -SP

Leis, regulamentos, normas, estatutos e tantas outras denominações não faltam para enfrentar juridicamente esses paradigmas impostos às cidades brasileiras. Somente na CF de 1988 há nove referências sobre o tema e outras três dezenas de leis ordinárias federais somam-se às centenas de regulações estaduais e municipais que dormitam nas gavetas dos gestores. Projetos e programas disponíveis à promoção da acessibilidade universal estão há muito estruturados por sucessivos governos, além de outras milhares de ações locais bem intencionadas. Porém, falta-lhes o básico: a efetividade da lei, o gesto executor, a decisão política, o fazer a coisa sair do papel.

Estranho descaso, pois a origem do problema não gera dúvidas. O próprio Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que é lei federal, é cristalino ao definir as calçadas (e passeios) como espaços públicos de trânsito. No mesmo rumo sustenta o Estatuto das Cidades e a (não tão recente) Lei Nacional da Mobilidade Urbana, dentre outras normas e programas em plena vigência. Ora, se calçada é viário público, por que o poder público municipal não a recepciona como tal, preferindo em vez disso editar códigos municipais de edificações e posturas (conflitantes com o CTB) que remetem ao ente privado (proprietário do imóvel) a obrigação de contruí-la e mantê-la, mesmo sem oferecer e dele exigir um mínimo de qualidade técnica no padrão construtivo? Quem sente o peso deste paradoxo é o cidadão comum, o pedestre do dia a dia, mas especialmente os cidadãos com mobilidade reduzida (idosos, gestantes, enfermos, obesos, crianças etc.) e aqueles que são vítimas de quedas frequentes em razão de suas deformidades, obstáculos, barreiras, ocupações e ausência de manutenção adequada.

Não por acaso são nas calçadas urbanas onde mais ocorrem acidentalidades que infernizam a vida das pessoas. Estudos realizados pelo Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/USP (2005) identificaram que 50 por cento dos atendimentos do seu pronto-socorro provêm de quedas sobre calçadas, fato que comprova ser este tipo de ocorrência não apenas um passivo urbanístico, mas essencialmente problema de saúde pública. Hoje esses números reduziram-se para 20 por cento no Hospital das Clínicas/USP, muito provavelmente pela difusão de outros centros de atendimentos de urgência surgidos desde a data da primeira pesquisa.

Pedestre salta por cima de um buraco na calçada da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, em São Paulo

Pedestre salta por cima de um buraco na calçada da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, em São Paulo

Mas há uma parcela enorme de pessoas que ainda mais sofre com a falta de atitude governamental: as vítimas de acidentes e crimes de trânsito.

Este é um país que produz, por baixo, 50 mil mortes/ano no trânsito e 150 mil lesionados graves/ano que ocupam em média 20 dias nos leitos hospitalares de urgências dos sistemas públicos de saúde (SUS/MS, 2010). Destes lesionados, 40 mil/ano sofrem mutilações e mais 30 mil/ano adquirem paraplegias e tetraplegias, a maioria constituída de jovens em plena força produtiva. Junte-se a esse drama a mais sensível e insuperável das sequelas, a psicológica, que tanto afeta as vítimas diretamente, quanto os familiares e amigos indiretamente.

Produzimos esse massacre anualmente no viário brasileiro e devolvemos para suas casas pessoas com deficiências irreversíveis sem que sejam a elas garantido um mínimo de espaço decente para se locomoverem quando necessário. Neste quesito são pessoas duplamente vítimas do descaso oficial, pois além de sucumbirem à violência no trânsito, tornam-se eternamente excluídas das cidades. Logo, não possuem direitos, embora estejam previstos; não possuem governos, embora existam; não possuem dignidade, embora humanos – enfim, não possuem o livre caminhar, o mais básico dos gestos.

Calçadas, pra que te quero?

 

Artigo publicado em:   Portal Ambiente Legal

 

 antenorpinheiroJornalista (Mtb 00643P GO), perito criminal e cível de trânsito e coordenador da Associação Nacional de Transportes Públicos/ANTP Regional Centro-Oeste

 

 

 

 


Desenvolvido por Jotac