Convenção 169 da OIT: uma interpretação ambientalmente incorreta

Por Francisco Silveira Mello Filho

A Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas foi ratificada em Genebra, no dia 25 de julho de 2002, por meio do Decreto Legislativo 143 de 20/06/2002, e entrou em vigência em julho de 2003 trazendo consigo dúvidas, questionamentos e, acima de tudo, muita preocupação. Sua finalidade era garantir uma maior integração entre os povos indígenas, a sociedade e o Estado proporcionando a preservação de sua cultura e tradição, respeitando a integridade e os direitos humanos.

Seu aspecto mais controvertido está na recente discussão do seu artigo 6º. O dispositivo prevê a obrigatoriedade da realização de consulta prévia aos povos indígenas e quilombolas toda vez que estes estiverem suscetíveis de serem diretamente afetados através de medidas administrativas ou legislativas. É a letra da lei:

Artigo 6o 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; (..) 2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. (Grifo Nosso)

Até hoje, o congresso não editou qualquer lei regulamentando o citado artigo, em especial, o procedimento próprio de que trata. Esta não é uma exclusividade Brasileira. Países como Venezuela, Bolívia, Colômbia e Equador também não dispõem de normas que regulem essa obrigatoriedade.

Parece-nos, que, apesar de não haver um modelo de aplicação, os governos dos países sul americanos têm entendido que a aplicação da consulta prévia segue ao passo da tramitação administrativa de novos empreendimentos em áreas indígenas, em especial, no que tange seu caráter ambiental.

Essa prática, por exemplo, já havia sido integrada aos procedimentos voluntários do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento como forma de política operativa ao exigir de seus parceiros a consulta aos povos indígenas no trato de empreendimentos financiados em terras ocupadas por eles.

Nesse sentido, o Brasil encontra-se na vanguarda, possui uma legislação ambiental moderna que prevê não só a consulta aos povos indígenas, mas como também a toda sociedade por intermédio de audiências públicas. As audiências públicas cumprem um importante papel no controle da Administração Pública no Estado Democrático de Direito. Dessa maneira, “fundamentam pretensões à satisfação dos fins sociais, culturais e ecológicos da igualdade de gozo das liberdades privadas e dos direitos de participação política”, de sorte que o próprio conceito de democracia se assenta no princípio participativo, o qual integra o conceito de Democracia Social.”[1]

Mais além, sobre a aplicabilidade e a finalidade desse instituto, podemos entendê-lo como procedimento de consulta à sociedade, ou a grupos sociais interessados em determinado problema ambiental ou potencialmente afetado por um projeto, a respeito de seus interesses específicos e da qualidade ambiental por eles preconizada. O pioneirismo dessa previsão ocorreu com a publicação da Resolução CONAMA 001, de 23/01/1986, que regulamentou o assunto.

Lembramos que o artigo 6 da Convenção 169 da OIT reza que a consulta aos povos interessados deve ocorrer medianteprocedimento apropriado (Artigo 6º, 1, “a”) e ser efetuado com boa fé. Sabe-se que as audiências públicas, seguindo as orientações da Resolução CONAMA 9, devem obedecer a prazos e procedimento específicos, garantindo sua satisfação democrática observando a boa fé. Elas convergem para um possível acordo ou consentimento acerca das medidas propostas buscando mitigar seus efeitos indesejados. Parece-nos transparente que este é procedimento apropriado para consultar os povos interessados quando tratamos de medidas administrativas, especialmente aquelas sobre empreendimentos em terras de ocupação indígena ou em outra qualquer.

A própria Convenção 169, artigo 2, número 2, “a”, ao tratar das ações governamentais no âmbito da Convenção, lembra que estas deverão se pautar em medidas “que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população”, ou seja, devemos preconizar medidas buscando a igualdade entre os povos e a população em geral. No nosso entender, esta é a finalidade principal da Convenção, garantir a oportunidade de participação de um cidadão comum aos índios e quilombolas.

É apropriado lembrar o tratamento conferido pela Carta Magna de 1988 aos índios em seus artigos 231 e 232. A Constituição “cuida dos índios, estabelecendo os seguintes princípios: direito à diferença; reconhecimento dos direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam e proteção de sua posse permanente em usufruto exclusivo para os índios; princípio da igualdade de direitos e da igual proteção legal”[2]. Consignamos ainda a existência do Estatuto do Índio (Lei nº 600/1971), e no Decreto 1.141, de 19 de maio de 1994, que dispõe sobre as ações de proteção ambiental, saúde e apoio às atividades produtivas para as comunidades indígenas.

Entendemos que é preciso cuidado ao regulamentar a Convenção 169 da OIT. O Brasil já dispõe de mecanismos democráticos que garantem a participação dos grupos e povos interessados, como por exemplo, os índios e quilombolas, quando em pauta projetos que afetem as terras por estes usufruídas. A mídia tem noticiado à necessidade de “plebiscito” junto aos povos interessados sobre a edição de leis e aprovação de novas obras. Algumas delas, como a veiculada pelo jornal O ESTADO DE SÃO PAULO em 12/11/2008, vinculam a necessidade do plebiscito a obtenção de licenças ambientais.

É inconcebível que assim seja. Primeiramente, não há qualquer previsão legal que regulamente o plebiscito como mecanismo para atender o artigo 6º da Convenção; e finalmente, o procedimento de licenciamento ambiental, respeitando o princípio constitucional da isonomia, já prevê a realização de audiência pública para oitiva das partes interessadas.

O Legislativo e o Judiciário devem estar atentos, vislumbrar que mesmo sem regulamentação expressa, por primazia legal, já são observados os direitos introduzidos pela Convenção 169 da OIT, especialmente sob o enfoque ambiental, e lembrar que todos são iguais, brasileiros, povo de uma única nação democrática chamada Brasil.

[1] Fonte: http://www.prt22.mpt.gov.br/trabevan34.htm

[2] Fonte: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8499. Nesse sentido é o entendimento de ANTUNES, Paulo de Bessa. Ação Civil Pública, Meio Ambiente e Terras Indígenas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998, p. 139-142.


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