Destinação de instrumentos, objetos e produtos de crimes para museus públicos

Foto Policia Federal/divulgação

Foto Policia Federal/divulgação

 

Por Marcos Paulo de Souza Miranda*

Na dinâmica da ocorrência dos mais variados crimes tipificados no ordenamento jurídico brasileiro, não é incomum a presença de bens de valor cultural figurando como instrumentos, objetos materiais ou produtos das condutas delituosas apuradas nos processos criminais que tramitam pelo Poder Judiciário.

No campo dos instrumentos de crimes, que compreendem os objetos ou aparelhos usados para o cometimento da infração penal, podemos citar, por exemplo, o uso de um rifle winchester (rifle de repetição por ação de alavanca, fabricado pela Winchester Repeating Arms Company, que foi usado extensivamente nos Estados Unidos durante a última metade do século 19 e exportado para várias partes do mundo, inclusive para o Brasil, sendo hoje considerado como arma rara), sendo utilizado para o abate de animais silvestres ou mesmo para a prática de um homicídio.

No âmbito dos objetos materiais, que compreendem as coisas sobre as quais recaem as condutas delituosas, podemos citar, de forma exemplificativa, o quadro de artista renomado que é danificado por um falso restaurador ou o busto de bronze exposto em praça pública que é arrancado e pichado por delinquentes.

Já no que tange aos produtos dos crimes, eles enfeixam as coisas que são obtidas com a atividade criminosa, como a escultura que é roubada, em assalto, de uma galeria de arte; os documentos históricos — de propriedade pública — que são apropriados indevidamente por um servidor; os fósseis que são extraídos clandestinamente para exportação ilícita e as obras de arte do período colonial, de artistas como Aleijadinho, que são adquiridas por colecionadores e declaradas formalmente à Receita Federal, com o escopo de branquear capitais obtidos por meios ilícitos.

A experiência daqueles que militam na área de combate aos crimes envolvendo bens culturais demonstra que são raras as operações contra organizações criminosas que não redundam em apreensão de bens culturais e obras de arte de grande valor.

No ano de 2005, por exemplo, as investigações envolvendo um banqueiro acusado de cometer fraudes no Banco Santos, liquidado no ano anterior, revelaram a existência de mais de dez mil bens arqueológicos suas em coleções, incluindo peças pré-históricas da Ilha de Marajó, bem como itens culturais provenientes de África, Índia, América Central e Itália.

Mais recentemente, durante a denominada operação “lava jato”, foram apreendidos com doleiros, lobistas, políticos, executivos de empresas privadas e da Petrobras mais de duas centenas de quadros, a exemplo de “Homenagem a Mondrian II”, de Nelson Leirner, “Década de 90”, de Amílcar de Castro, “Bailarina”, de Salvador Dalí, “Manequins” (1991), de Iberê Camargo, “Roda de Samba” (1958), de Heitor dos Prazeres, “Trama Urbana (1983), de Cláudio Tozzi, e “Nu Deitado” (sem data), de Orlando Teruz, além de peças de Carlos Vergara, Cícero Dias, Vik Muniz e Miguel Rio Branco.

A experiência também demonstra que, em nosso país, são raros os grandes depósitos de bens apreendidos judicialmente que não ostentam bens de valor cultural armazenados, não raras vezes há vários anos, em situação inadequada, aguardando uma destinação final.

Feita essa breve introdução, a pergunta que se coloca é a seguinte: terminado o processo judicial que motivou a apreensão dos bens culturais, considerando o seu especial significado para a sociedade, seria possível destiná-los a acervos de nossos museus?

Examinemos a legislação penal e processual penal em busca da resposta.

O Código Penal Brasileiro dispõe em seu artigo 91 que são efeitos da sentença penal condenatória: tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito; do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.

No campo processual penal, o artigo 123 do CPP estabelece que se dentro no prazo de 90 dias, a contar da data em que transitar em julgado a sentença final, condenatória ou absolutória, os objetos apreendidos não forem reclamados ou não pertencerem ao réu, serão vendidos em leilão, depositando-se o saldo à disposição do juízo de ausentes.

Tal regra tem aplicação genérica às coisas apreendidas. Contudo, em se tratando de bens de valor cultural, o Poder Judiciário tem entendido que é possível, mediante utilização analógica da parte final do artigo 124 do CPP, que eles sejam integrados ao acervo de museus públicos ou congêneres.

No ano de 2015, por exemplo, atendendo a pedido do Ministério Público de Minas Gerais, a Justiça Federal de Belo Horizonte determinou que centenas de peças sacras coloniais apreendidas em poder de integrantes de uma quadrilha especializada no furto de bens culturais fossem integradas ao acervo do Museu Mineiro, passando a compor a exposição “Em busca do patrimônio perdido”, que buscou conscientizar a população sobre os danos decorrentes da subtração de bens de valor cultural e as formas de preveni-los.

Já no caso do Banco Santos, acima citado, o então juiz federal Fausto Martin de Sanctis destinou os bens arqueológicos apreendidos ao acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.

Quanto aos objetos utilizados para a prática de crimes, o artigo 124 do CPP dispõe expressamente que eles podem ser inutilizados ou recolhidos a museu criminal, se houver interesse na sua conservação. Logo, há texto normativo expresso no sentido de que os instrumentos de crime que possuam valor cultural que justifique a sua conservação podem ser destinados a museu criminal, que pode compreender, a nosso sentir, qualquer instituição museal pública em que os bens possam ser expostos por guardar pertinência com os objetivos, finalidades e vocações da entidade, ainda que não seja especificamente voltada para vestígios relacionados com crimes.

Aliás, são pouquíssimos os museus criminais existentes no Brasil e as pesquisas envolvendo o patrimônio cultural relacionado à prática de crimes. Nos EUA, por exemplo, existe o National Museum of Crime & Punishment, situado em Washington, que se destaca entre as instituições museais daquele país.

No que tange a armas de fogo, entendemos que o previsto no artigo 25 da Lei 10.826/2003 (envio ao comando do Exército para destruição ou doação a órgãos de segurança ou às Forças Armadas) e no artigo 25, §5º, da Lei 9.605/98 (venda) deve ser lido em consonância com a previsão especial contida na parte final do artigo 124 do CPP, de sorte que, em se tratando de armas de valor cultural (tais como antigas garruchas, espingardas, mosquetões e bacamartes de valor histórico), haja a sua destinação a museus criminais ou a quaisquer outros museus públicos.

Quanto às armas já destinadas ao Ministério do Exército, vale destacar que o artigo 45, §8º, do Decreto 9.847/2019 estabelece que as armas de fogo de valor histórico ou obsoletas poderão ser objeto de doação a museus das Forças Armadas ou de instituições policiais indicados pelo comando do Exército.

Mais recentemente, com o advento do denominado pacote “anticrime” (Lei 13.964/2019), foi inserido o artigo 124-A ao Código de Processo Penal, estabelecendo, de forma expressa, que, na hipótese de decretação de perdimento de obras de arte ou de outros bens de relevante valor cultural ou artístico, se o crime não tiver vítima determinada, poderá haver destinação dos bens a museus públicos, que, nos termos do artigo 13 da Lei 11.904/2009 (Estatuto dos Museus), compreendem todas as instituições museológicas vinculadas ao poder público, em todos os níveis federativos, situadas no território nacional.

O novel dispositivo inserido pelo pacote “anticrime” trouxe maior clareza e segurança aos operadores do Direito, possibilitando que bens de valor cultural envolvidos em processos criminais sobre delitos cometidos contra os interesses da sociedade possam ter destinação mais nobre, sendo integrados aos acervos dos museus públicos do nosso país.

 

*Marcos Paulo de Souza Miranda é promotor de Justiça em Minas Gerais, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais e membro do Council of Monuments and Sites (Icomos).

 

Fonte: Conjur
Publicação Ambiente Legal, 08/02/2021
Edição: Ana A. Alencar

 

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