FALTA UM GOVERNO PARA A AGRICULTURA BRASILEIRA

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Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro

A agricultura é uma tradição multicentenária e traço de nossa identidade nacional. É originada, por um lado, na chamada agricultura de extensão – monoculturas que se extendiam por currais e currais das primeiras sesmarias, visando conferir funcionalidade econômica à demanda por ocupação territorial nos territórios sob domìnio da coroa portuguesa e, por outro lado, nas culturas extrativistas e rudimentares, praticadas originalmente pelos índios e, posteriormente, pelos caboclos e cafuzos, nas matas, rios e litoral.

Com todos os problemas advindos, preconceitos adquiridos e males atribuídos à atividade, o fato é que a agricultura brasileira sofreu enorme e secular incremento, cresceu e se intensificou. Há grandes méritos nesta histórica experiência.

Residem na agricultura brasileira as mais nobres características do povo brasileiro: a força, a determinação e a resiliência.

Força, determinação e resiliência marcam a saga fabulosa do agricultor brasileiro. O agricultor que venceu a muralha do atlântico, as selvas intransponíveis, os acidentados planaltos meridional e central, os enormes e indomáveis cursos d’água, a falta destes, as condições climáticas e geológicas. O agricultor que também venceu a falta de apoio governamental, a inexistência de planejamento, a falta de recursos e a corrupção. O agricultor que enfrenta os entraves criados pela mais estúpida burocracia do globo terrestre, as adversidades do mercado e a ação política de organizações internacionais interessadas em relativizar a soberania do país. O agricultor tudo faz para extrair da terra volumes impressionantes de alimentos e insumos – produtos que abastecem o mundo todo e representam a maior fonte de divisas do Brasil.

Somos os maiores exemplos de produção intensiva de proteína, animal e vegetal. Uma referência na produção de celulose, de biocombustíveis, etc.

A história de sucesso da agricultura brasileira, no entanto, não é reconhecida como deveria. Isso se deve à incompetência, absoluta desinformação e preconceito ideológico. Há uma vinculação mal formulada entre o sucesso econômico da agricultura atual, intensiva, e a estrutura social que estigmatiza toda a economia brasileira.

De fato, a miséria social e ambiental é associada à escala da atividade agrícola extensiva que hoje não guarda relação com as práticas de monocultura intensiva atuais.

A estratificação da miséria, outrossim, não está vinculada à modalidade atual de exploração da terra pela atividade agrícola mas, sim, à estrutura fundiária e social desenvolvida para a exploração da cultura por extensão desde os tempos coloniais e à ausência de uma resposta competente do governo, em especial na esfera federal, na condução de uma política de gestão territorial e econômica, desde então.

Isso é histórico, é sociológico, como demonstra a grande obra de Gilberto Freire, o pai de nossa sociologia.

Como lecionou o Prof. Paulo Nogueira Neto, “homem é território”. E a gestão fundiária há de ocorrer em consonância com as melhores respostas econômicas ao uso da terra, não contra estas.

Nessa perspectiva, é condição sine qua non para um bom gerenciamento territorial da agricultura o pleno conhecimento do espaço onde a atividade humana ocorre, para que se possa adequar o planejamento econômico às condições ambientais da área em que a atividade irá se desenvolver. Essa ação não compete meramente ao mercado, aliás, nunca competiu – é de ordem econômica, ou seja, integra o planejamento territorial e a ação do Estado.

Poderíamos dar um salto de qualidade sem precedentes se um instrumento ecológico e socialmente importante, já previsto em nossas legislações, o zoneamento agroecológico, fosse realmente executado e colocado em prática.

Houvesse um governo – poderíamos implementar:

a) um mapeamento;

b) um inventário dos recursos ambientais e econômicos;

c) um planejamento integrado;

d) um ordenamento territorial valorizando bacias de preservação e de produção – que evitasse a política medíocre do “tabuleiro de xadrez” – que insere mato na plantação e vice-versa;

e) uma política pública consistente para a agricultura que envolvesse corredores de escoamento múltiplos, logística distribuição e de abastecimento e uma política agro-ambiental descomplicada.

Houvesse um governo, poderíamos, finalmente, deter um conhecimento profundo das áreas de plantio e daquelas que seriam destinadas a outros fins, aplicar políticas de produção somadas ao planejamento territorial adequado e realmente capaz de reconduzir, e não mais obstruir, a produção agrícola nacional.

O ordenamento territorial da produção agrícola, somado à implementação do disposto no Estatuto da Terra, confeririam, finalmente, função social à produção extensiva nacional.

Porém, nas últimas cinco décadas, esforços nessa direção só têm ficado no papel, por causa de conflitos de interesses que não se justificam, a não ser para a manutenção da injusta estrutura social existente no campo.

Interesses amesquinhados, envolvendo setores de arrecadação, também, poluem a ação implementadora do governo.

A título de exemplo, o Estatuto da Terra, de enorme importância para a modernização da economia no campo, foi mutilado pela legislação tributária e afogado por programas governamentais díspares e imediatistas, ocorrências que lhe retiraram o status de lei administrativa e ambiental que merecia. O direito agrário brasileiro, por sua vez, sofreu duplo ataque que o distorceu doutrinariamente, seja pela reação dos operadores civilistas do direito (que reduziram seus instrumentos de controle sobre a funcionalidade social da propriedade), seja pela militância marxista infiltrada na burocracia estatal, que desfigurou marcos legais para neles inserir meros discursos, em forma de atividade regulatória.

A lei de cultivares, de 1991, que estabelece o zoneamento agroecológico como instrumento sem o qual nem hidrelétricas poderiam ser implantadas em zona rural, também continua no papel.

O Código Florestal Brasileiro, emendado, remendado, renovado, é vítima de conflitos de ordem ideológica e acometido pelo fenômeno da “tapagem regulatória”, praticada pela estupidez burocrática sem qualquer resultado prático – exemplo é o Cadastro Rural, que hoje sofre com o excesso de regulação, a ponto de correr o risco de se ver inviabilizado.

A falta de planejamento econômico no Brasil é crônica. A agricultura, na verdade, sobrevive APESAR dessa falta.

O planejamento é atividade econômica de ordem pública. Deveria, primeiro, existir. Deveria abranger períodos de vinte anos a cinquenta anos e, não, “janelas de mandatos eletivos”.

O planejamento teria que ser precedido de um mapeamento nacional articulado com um inventário livre de preconceitos, que apresentasse e avaliasse os potenciais econômicos no uso da terra, sem descuidar dos cuidados com manutenção de biomas e biodiversidade.

A cegueira militante inoculada na burocracia estatal, no entanto, faz com que mapas sejam produzidos no Brasil discriminando atividades antrópicas dos ecossistemas naturais. Desvalorizando potenciais hídricos e minerários em função das restrições de superfície e conflitos étnicos. Antepondo restrições de ordem territorial a conflitos humanos e atividades econômicas produtivas, de forma a impedir que graficamente se busque solução para todas essas questões.

Não há uma priorização. Há confusão.

Na confusão, o controle territorial desaparece, conflitos são perenizados, a autoridade evapora e soberania nacional torna-se relativizada.

O Governo Federal, portanto, se realmente quisesse valorizar a força, a determinação, a resiliência e, também, zelar pela soberania, deveria ter coragem assumir o controle territorial do Brasil. Deveria implementar e orientar os esforços de mapeamento, inventário, planejamento e ordenamento territorial, consertando e concertando os dispositivos legais em vigor, dirigindo-os para um único alvo: ao fortalecimento da agricultura.

Deve, ainda, o Governo Federal, não apenas dar ao setor de agricultura a prioridade que merece, mas, também, estabelecer condições objetivas, criteriosas, para que a atividade agrícola possa expandir-se não apenas para as fronteiras agrícolas, como para espaços utilizados pelos ciclos econômicos anteriores, hoje subutilizados ou sob risco de urbanização crescente e desordenada, como é o caso do sul do Mato Grosso, de áreas nos estados do Mato Grosso do Sul, Tocantins, Goiás e Paraná e do oeste paulista. Essas condições envolveriam o planejamento, o ordenamento legal, a infraestrutura logística e instrumentos de financiamento. A medida constituiria resposta efetiva à pressão expansionista da fronteira agrícola sobre o bioma amazônico, por exemplo.

Como se diz na estratégia militar, “tomar decisões difíceis é privilegio da patente”. Por analogia, dessa prerrogativa o administrador publico não pode mais eximir-se. Até agora, os governos da chamada “Nova República” lançaram mão de surrados discursos fáceis e respostas paliativas. Porém, a realidade exige adoção de medidas estruturais capazes de orientar e implementar um planejamento agroecológico decente para o país.

O primeiro passo nessa direção é reconhecer as necessidades dos grandes produtores, cujo trabalho é vital para a economia interna e para a conquista de um melhor posicionamento do produto brasileiro no mercado globalizado.

Evidente, que esse reconhecimento não significa deixar de valorizar os pequenos produtores. O estímulo ao desenvolvimento de ilhas de produção diferenciada, por exemplo, é absolutamente necessário.

No Estado de São Paulo, até o início deste século XXI – em especial na região de Ribeirão Preto e Jaboticabal, apesar de tomada a região pela cana de açúcar, a terra roxa paulista abrigou muitos pequenos agricultores, com outros tipos de plantios – que só não seguiram adiante nos últimos anos, por conta do absoluto abandono da gestão agrícola no Estado, pelo governo… e desastrosas medidas de ordem judiciária, a título de “recomposição de mata ciliar, reserva legal, licenciamento ambiental para plantio (???), etc”.

Parece que nossa estúpida burocracia se aperfeiçoa, a ponto de não mais reconhecer que o Poder Público é um só.

Hoje, há “vários” poderes públicos – todos reclamando o respeito ao interesse público, nenhum tratando de harmonizar seus interesses, todos agindo contra o cidadão, como se este pudesse tratar com algo que se lhe apresenta como uma colcha de retalhos brucrocrática.

Por isso são constantes os conflitos. Poderes da República, ministérios, secretarias, carreiras jurídicas, entes regulatórios, dão mostras de efetivamente não se comunicarem.

Exemplos não faltam desse desastre.

O caso do não repasse de verbas federais para a vigilância sanitária de nossas fronteiras, e o consequente surto de febre aftosa no gado sul-mato-grossense; a paralisia das autoridades ambientais, acometidas pela estupefação diante do surto de corrupção nas autorizações de transporte de madeira, e do seu combate pela polícia e pela Justiça na região amazônica, no início do século XXI. Os avanços e retrocessos judiciais no licenciamento ambiental da Usina de Belo Monte, no Estado do Pará e os conflitos com aldeamentos indígenas, nos últimos anos. A recente discussão sobre o Código Florestal, desembocando na pretensão do governo federal licenciar plantios e obstruir, com isso, a implementação do Cadastro Ambiental Rural. A ridícula atuação subalterna, deslumbrada e “vira-lata” nos últimos acordos e entendimentos sobre mudanças climáticas, perdendo as autoridades brasileiras a oportunidade de incluir a agricultura como protagonista do esforço em prol da resiliência face às intempéries do clima – pelo contrário, permitindo que o esforço de produção de alimentos e insumos brasileiro fosse, mais uma vez, tido e havido como “vilão climático”, fragilizando sua posição no mercado mundial de commodities.

Todos esses exemplos, enfim, mostram que o produtor brasileiro paga uma conta pesada, cada vez maior, pela incompetência e sectarismo dos administradores públicos que não usam bem das atribuições que lhe foram conferidas pelo exercício do poder.

Portanto, preocupar-se apenas em sustentar a biografia de alguns dirigentes e ministros não levará o Governo Federal e os governos estaduais a lugar algum. Muito menos permitirá aos governantes deixarem algum legado para o futuro…

A tarefa inadiável que precisa ser feita com máximo empenho e urgência é a alterar o modelo de administração territorial e adotar o princípio da prevenção como forma de implementar o controle do território – cujas ações básicas resumem-se em mapear, planejar, ordenar, prever, prevenir, monitorar e fiscalizar (nessa ordem).

É obrigação do Governo Federal, a preservação. Mas o governante deve contemplar, com o mesmo ânimo, as saídas economicamente viáveis para a demanda da atividade agrícola. Isto porque ignorar a presença e necessidades econômicas do homem no ambiente natural, é tão autoritário quanto negar valor ambiental à mata virgem.

Reitere-se, a atividade agrícola brasileira tem um longo histórico voltado para a formação de commodities do campo com base na monocultura. Não dá para passar por cima dessa realidade por mero capricho ideológico ou revisionismo.

Definitivamente, do que menos precisamos agora é de discursos extrativistas de esquina, principiologismos de boteco confundindo avanço com retrocesso, burocratas naturebas pretendendo licenciar burocraticamente o plantio da horta, urbanóides vociferando contra monoculturas ou posições histéricas a favor da indústria da degradação ambiental.

Precisamos resgatar fundamentos históricos e sociais, firmar conceitos, conferir abrangência à atividade de planejamento, para fincar índices reais da economia rural de e ordenar o avanço da agricultura de acordo com nossos traços culturais, mudando rumos sem violentar nossa grande e valorosa identidade agrária nacional.

A agricultura brasileira não vive apenas de mesadas de instituições financeiras governamentais, e pouco adianta inocular representantes da agricultura em governos que não planejam e não ordenam o próprio território.

Na verdade, falta um governo para a agricultura.

 

afpp-55 (3) - CopiaAntonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, integra o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro da Comissão de Infraestrutura e Sustentabilidade e da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo (OAB/SP). Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal. Responde pelo blog The Eagle View.

 

 

 

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