Memórias Digitais em busca da Eternidade

(foto: shutter - away for abit)

(foto: shutter – away for abit)

 

Por: Eliana Rezende

De novo a questão das obsolescências e permanências.

A crescente demanda por informação e acesso tem imposto alguns limites e soluções precisam ser buscadas.

Como não perder tudo o que se produz? Como e onde armazenar? Para quê e para quem? Com quais finalidades? E com quais custos?

São muitas as perguntas!

Creio que a partir do momento que tais tais questões e reivindicações surgem é de fato um progresso interessante.

Além disso, destaco mais dois outros pontos importantes: a busca por um direito de acesso à informação e de outro o exercício de transparência e cidadania em suas múltiplas esferas.

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Diriam alguns que Tecnologia da informação é um eterno reinventar, por que existe a barreira das leis da física. Noves fora isso, o restante é com o departamento de marketing.

Mas será?

Poria outros dois mais: o financeiro que destina recursos, e porque não a preservação de documentos para o futuro?

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Como historiadora, um dos principais obstáculos que temos é a garantia de acesso a documentos através do tempo. A longa duração para historia pode significar a eternidade, já para a tecnologia ela representa tão somente casas que vão abaixo dos dois dígitos e que ficam em torno de 3 ou 5 anos. A conta não fecha!

Haja visto a quantidade, por exemplo, de links e arquivos digitais que se perdem todos os dias. Somos a geração que mais produz informações em toda a história da humanidade, mas também a que mais perde.

Já convivo nos dias atuais com perdas irreversíveis e isso vale tanto para suportes físicos quanto digitais. Por isso, a minha preocupação sempre presente com a preservação documental sob vários aspectos: sem ela teremos vácuos impossíveis de serem recuperados pelas sociedades futuras.

Um exemplo interessante é o caso do Livro do Apocalipse, de William o Conquistador, escrito em couro no ano de 1086. Sobreviveu por 900 anos, chegando até nós. Mas uma versão digitalizada da obra, gravada em 1986, não pode mais ser lida em 2006, apenas 20 anos depois.
Seria cômico, se não fosse trágico!

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E os problemas se multiplicam quando pensamos na quantidade imensa de Bibliotecas Digitais que são formadas e que poderão facilmente estar perdidas para sempre.

E em relação a Portais institucionais, sites e blogs temos sérios problemas.

Uma massa imensa do que produzimos nasce, vive e se desenvolve em meios digitais. É editado, alterado e recortado nestes meios e posso assegurar que ninguém se preocupa com suas versões anteriores.

Mas onde estão mesmo estas versões?

Quem era esta instituição em sua primeira versão de Portal ou Site?

Ninguém sabe ou saberá…

Não consigo compreender como ninguém possa estar preocupado com as inúmeras páginas de conteúdo que desaparecem quase que na mesma velocidade em que são produzidas. Até 2020, segundo expectativas, teremos produzidos 44 zetabytes de informações.

Para se ter uma ideia, 1 zetabyte equivale a 2.000.000 de anos de música!

A despreocupação vale para conversas em redes e imagens… muitas imagens.

Ninguém registra estas correspondências ordinárias e nem seu movimentado alfabeto de construção. Séculos adiante não teremos como saber as formas de registros coloquiais que nossa geração produziu.

Léxicos e formas de expressão estarão para sempre perdidos. Provavelmente ainda teremos hieróglifos egípcios e as tábuas de argila mesopotâmicas e nada sobre nossas comunicação rápida digital.

Inventamos a internet para ser apagados por ela! Não deixaremos sequer rastros.

O descarte imediato de tudo leva-nos para um não lugar. Um espaço virtual, sem forma e vazio.

Não daremos aos nossos descendentes a possibilidade de conhecer nossos pensamentos por registros cotidianos, que antes eram tão bem feitos por diários, cartas e outros tipos de registros.

Há ainda os textos e hipertextos, numa leitura que há muito deixou de ser linear. Perderemos conteúdos e as leituras hiperlinkadas que cada texto produziu.

Enfim, nosso presente é editado e recortado com desprezo incondicional por sua gênese.

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O mesmo ocorre com muitos manuscritos ficcionais e obras literárias várias.

O tempo dos manuscritos editados à mão pelo artista não existem mais e assim, muito de seu processo criativo se perde. As versões editadas e limpas chegam sempre às editoras sem o rastro dos caminhos de uma escrita.

Esta ausência inviabilizaria uma publicação como a que ocorreu com Mário de Andrade, que recentemente teve uma edição da obra e seus manuscritos. Uma riqueza documental propiciada por originais, cartas, rascunhos e tão belamente trabalhados no IEB/USP.

A situação é tão inquietante que no Reino Unido estão fazendo a solicitação para que escritores entreguem seus computadores antigos ao invés de os jogarem fora para a British Library e, utilizando-se de programas de investigação forense e perícia reconstituem por metadados tais caminhos criativos de grandes autores.

Uma tarefa que aos poucos também me parece inviável, já que seria um forma de arqueologia digital (manter computador, software e hardware), e fazer a manutenção disso no tempo, também não me parece razoável e nem possível.

O mesmo vale para importantes pesquisas científicas publicadas. Temos sempre um artigo limpo e editado e nunca os caminhos rascunhados, desenhados, arquitetados e editados, percorridos.

Sorte teremos se daqui a 100 anos o artigo final esteja preservado!

O valor destes manuscritos são fáceis de ser mensurados quando pensamos em Isaac Newton, Albert Einstein, Leonardo Da Vinci. Que seria de nós se apenas tivéssemos sua última versão?

Sem sabermos suas indecisões e por onde andaram seus pensamentos e invenções? É deste trajeto que me refiro quando falo em processo criativo deletado dia a dia.

Um exemplo bem acabado do que cito foi que cinco séculos após a morte de Leonardo Da Vinci cientistas italianos conseguiram interpretar seu projeto para um carro, e recriá-lo a partir de suas anotações. A invenção é considerada um precursor do automóvel moderno.

Conheça-o clicando na imagem:

Da-Vinci-Carro-Automovel
Óbvio está que não poderemos, a bem da sanidade, preservar “tudo” o que se produz. Mas há que haver políticas que visem a preservação digital de nossa produção social, cultural, intelectual e científica. Não se pode tolerar a ideia de que séculos adiante, igual aos Maias, seremos reconhecidos como aqueles que não deixaram herança aos seus descendentes.

É aqui que entra uma das minhas maiores motivações profissionais: ajudar a salvar do esquecimento e da obsolescência, os vestígios de nossa civilização. As instituições precisam se dar conta que NECESSITAM de uma política de preservação digital, tanto quanto de ferramentas para produção e uso de informação no agora. Não terá valido de nada tudo o que uma organização, pessoa, instituição ou sociedade criou se não for capaz de preservar isso para o futuro.

Imagino que duas coisas são fundamentais: uma reconhecer que temos tantos problemas quanto produção massiva de informação. Outra, que apesar de tudo não precisamos abrir mão de tudo e entrar num desânimo pessimista.

Políticas sérias de preservação digital, com um olhar que vá bem além do horizonte imediato, podem minimizar problemas. É um caminho que requer planejamento e investimento em recursos (tempo, dinheiro e pessoal).

Possível e viável, desde que planejado e desejado.

 

ELIANAREZENDEEliana Rezende é diretora da ER Consultoria, Gestão de Informação e Memória Institucional, doutora em História Social – Cultura e Cidades – UNICAMP, mestre pela PUC/SP, especialista em Preservação e Conservação de Colecções de Fotografia – Lisboa, Portugal com participação em vários projetos de política de preservação digital, proteção da memória e gestão documental governamentais e corporativos. Articulista do Portal Ambiente Legal.

 

 

 

 


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