Municípios devem exigir avaliação de impactos no patrimônio arqueológico

Sítio Arqueológico Cais do Valongo - Rio de Janeiro (RJ)

Sítio Arqueológico Cais do Valongo – Rio de Janeiro (RJ)

Por Marcos Paulo de Souza Miranda*

Como sabido, cada vez mais o Brasil se torna um país urbano. Segundo dados do IBGE, em 2015, 84,72% dos brasileiros viviam nas cidades, e esse percentual vem aumentando, gradativamente, a cada ano que passa.

Esse fenômeno, como é óbvio, implica na expansão crescente das unidades habitacionais (individuais ou coletivas), polos de serviços e implantação de infraestrutura urbana, fazendo com que loteamentos, desmembramentos, rodovias, metrôs, aeroportos e um sem número de demolições, construções e reformas tomem conta do cenário urbano.

Tal realidade transformadora, considerando o princípio reitor do desenvolvimento sustentável, impõe a necessidade da realização de estudos de impacto ambiental e obtenção de licenças e autorizações por parte do poder público, como é cediço. Os estudos de impacto, contudo, não podem se limitar ao aspecto naturalístico do meio ambiente, devendo, ao revés, avaliar todas as dimensões do meio ambiente globalmente considerado, inclusive a faceta do meio ambiente cultural[1], às vezes confundido, equivocadamente, como sinônimo de “patrimônio histórico e artístico”.

Com efeito, seja em áreas urbanas já consolidadas, seja em áreas com urbanização em fase inicial, é comum a existências de elementos pretéritos portadores de referência à ocupação do território do município e que possuem valor digno de preservação, ou, ao menos, de estudo e registro. Nem tudo deve ser protegido pelo tombamento e tornar-se imodificável, nos termos do Decreto-Lei 25/37, que trata de uma das formas de máxima proteção ao nosso patrimônio. Mas nem tudo deve ser destruído sem prévia avaliação, pois o registro, a produção de conhecimento científico e o salvamento são estratégias alternativas mínimas de proteção, que podem, desde que motivadamente e conforme os atributos culturais envolvidos no caso concreto, eventualmente substituir a conservação in situ. O ponto de equilíbrio há de ser buscado nessa equação, pois é possível conciliar, na maioria das vezes, preservação com desenvolvimento.

A descoberta de um fóssil de dinossauro quando das obras de fundação de um prédio em Uberaba (MG), o achado de uma urna indígena pré-histórica nas obras de revitalização de uma praça em Manaus e a localização e escavação do antigo Cais do Valongo, durante as obras de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro (sítio arqueológico reconhecido como patrimônio cultural da humanidade em 2017) são alguns exemplos de destaque que demonstram a importância de ações preventivas na área do patrimônio cultural urbano, notadamente no que se refere ao que chamamos de “patrimônio oculto” ou “sem rosto”, constituído por elementos situados em sub-superfície, escondidos sob as solas de nossos sapatos.

Segundo a Carta de Laussane para a Proteção e Gestão do Patrimônio Arqueológico (Icomos, 1990), o patrimônio arqueológico é um recurso natural frágil e não renovável, razão pela qual a proteção dos bens de valor para a arqueologia constitui obrigação moral de todo ser humano e também responsabilidade pública coletiva, que deve se traduzir na adoção de uma legislação adequada que proíba a destruição, degradação ou alteração de qualquer monumento, sítio arqueológico ou seu entorno, sem a anuência das instâncias competentes, prevendo-se a aplicação de sanções adequadas aos degradadores desses bens.

Por isso, afirma-se que, de direito, o patrimônio arqueológico constitui legado das gerações do passado, representada pelos vários segmentos formadores da sociedade nacional, e a geração presente não pode interromper esse legado às gerações futuras[2].

Entretanto, sabe-se que em nosso país, infelizmente, o poder público costuma relegar a segundo plano a avaliação dos impactos ao patrimônio cultural decorrentes de intervenções no meio ambiente urbano, o que, não raras vezes, redunda na destruição de bens culturais de relevo ou na perda irreversível de conhecimento sobre eles.

Como alertam Igor Chmyz e Laércio Loiola Brochier:

No que se refere aos valores culturais representativos da história da ocupação territorial das cidades, o enfoque, no entanto, está concentrado quase que exclusivamente no patrimônio edificado, havendo poucos exemplos da preocupação com os vestígios arqueológicos encerrados no subsolo urbano. Com isso, desconsidera-se um importante acervo pré-histórico e histórico encoberto pelas edificações, asfaltos, calçamentos, etc. e, aquele situado nas áreas ainda pouco perturbadas, mas sujeito ao avanço e renovação da infraestrutura urbana. A pesquisa arqueológica nas cidades reveste-se de especial importância, já que possibilita o resgate dos vestígios e o estudo das ocupações pretéritas, além de fornecer elementos relativos aos antigos ambientes em que estavam condicionadas[3].

Diante desse cenário, quantas antigas fazendas com suas estruturas adjacentes (capelas, senzalas, currais, engenhos, muros de pedra, valos etc.), quantas edificações coloniais públicas e privadas, quantas obras de infraestrutura (pavimentações em pedra, aquedutos, chafarizes, pontes etc.), quantos vestígios de atividades econômicas e industriais (galerias para exploração de ouro, fornos de fundição, olarias, caieiras, jazidas de materiais utilizados para construção civil) se perderam em nosso país em razão da renovação ou expansão urbana, sendo destruídas sumariamente sem a realização sequer de um croqui ou registro fotográfico?

Ora, se é verdade que as cidades são realidades dinâmicas, que não podem ser congeladas, não é menos certo que as renovações e expansões urbanas devem ser precedidas de cuidados para que não haja lesão, à margem da lei, aos bens culturais inseridos no contexto de empreendimentos com potencial degradador, pois o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) estabelece que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante diversas diretrizes gerais, entre as quais se encontram a: “Ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a deterioração das áreas urbanizadas, a poluição e a degradação ambiental” (art. 2º, VI) e a “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico” (artigo 2º, XII).

Importa ainda chamar a atenção para o fato de que, diante das problemáticas enfrentadas com o crescimento das cidades, em 1968, a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) publicou a Recomendação de Paris sobre Obras Públicas ou Privadas, na qual foram previstas medidas de preservação e salvamento do patrimônio, tendo em vista projetos de expansão e/ou renovação urbana. Interessante que, para os fins da recomendação, são englobados não só os sítios e monumentos arquitetônicos, arqueológicos e históricos reconhecidos e protegidos por lei, mas também os vestígios do passado não reconhecidos nem protegidos, assim como os sítios e monumentos recentes de importância artística ou histórica.

Essa diretriz se harmoniza com os mandamentos insertos no artigo 23, III e IV Constituição Federal, que impõem a todos os entes federativos os deveres de proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos, além de impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural.

Para o alcance desses objetivos, os municípios devem prever instrumentos de planejamento, preservação e gestão do patrimônio cultural no âmbito de suas políticas urbanas, sobretudo no que diz respeito à avaliação de impactos decorrentes de empreendimentos potencialmente degradadores.

Todas as ações em tal sentido devem ser norteadas pelo princípio da prevenção, que impõe a adoção prioritária de medidas que evitem o nascimento ou a continuidade de atentados ao patrimônio cultural, de modo a reduzir ou eliminar as causas de ações suscetíveis de alterar a sua higidez. Com efeito, a prevenção de danos ao patrimônio cultural é uma das mais importantes imposições no que tange à matéria sob análise, sendo de se lembrar que nosso legislador constituinte estatuiu que meras ameaças (e não necessariamente danos) ao patrimônio cultural devem ser punidas na forma da lei (artigo 216, parágrafo 4º). Ou seja, em termos de patrimônio cultural, nosso ordenamento está orientado para uma posição de caráter fundamentalmente preventiva, voltada para o momento anterior à consumação do dano — o do mero risco[4].

Para a materialização de uma política urbana comprometida com a gestão do patrimônio cultural, para além das tradicionais ações relacionadas à conservação e gestão de bens edificados tombados, os municípios devem estruturar um bom arcabouço normativo, implantar órgãos especializados na temática e prever cargos a serem providos por profissionais com formação na área, a exemplo de historiadores, arqueólogos e arquitetos.

A harmonização da legislação urbanística com as regras relativas à proteção do patrimônio cultural mostra-se, internacionalmente, como medida recomendável para a adequada gestão territorial pelas autoridades públicas em todos os níveis[5].

Em tal contexto, na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o Decreto municipal 22.872/2003 previu que todas as obras que envolvam intervenções urbanísticas e/ou topográficas feitas pelo poder público municipal — direta ou indiretamente, em áreas que sugiram interesse histórico — deverão prever estudos e acompanhamento com vistas à pesquisa arqueológica.

Já o Decreto 22.873/2003 criou a Carta Arqueológica do Município do Rio de Janeiro, constituída pelo mapeamento, em escala cadastral, dos sítios arqueológicos e das áreas de potencial arqueológico do município, entendidas estas como as que apresentam a probabilidade de ocorrência de vestígios materiais não documentados. Os dados inseridos na Carta Arqueológica deverão possibilitar a caracterização do potencial arqueológico das áreas estudadas e a consequente definição do zoneamento arqueológico do município, este orientado segundo objetivos preservacionistas e educacionais, como instrumento de apoio à gestão do patrimônio arqueológico, definindo áreas críticas passíveis de estudos de impactos, apoiados em legislação municipal própria[6].

No ano de 2006, foi criada a Gerência de Arqueologia na estrutura da Secretaria Municipal de Cultura – Subsecretaria de Patrimônio Cultural (SUBPC), que tem competência para realizar, na cidade do Rio de Janeiro, a identificação e a avaliação de sítios arqueológicos, acompanhamento de projetos de intervenções em subsolo de áreas ou bens protegidos e de locais com interesse histórico cujo licenciamento de obras depende de parecer do órgão municipal de proteção, registro de sítio arqueológico, elaboração de pareceres técnicos e conservação de acervo, dentre outras.

A inserção do viés cultural nos processos de licenciamento de empreendimentos urbanísticos no âmbito dos municípios tem um enorme potencial para prevenir a ocorrência de danos em detrimento do patrimônio cultural, para mitigá-los ou compensá-los, gerando benefícios para toda a sociedade. Medida preventiva básica em tal cenário é o redesenho ou a realocação, que conduzem à alteração do projeto do empreendimento originariamente proposto, de forma a não danificar um bem cultural identificado na área. No caso de um loteamento, por exemplo, identificada a existência de galerias centenárias utilizadas para a extração do ouro no local para o qual estava previsto um lote, poderia ser prevista a sua realocação e a implantação na área de ocorrência dos vestígios de uma praça, de forma a preservar as estruturas históricas e viabilizar, inclusive, futuras ações de educação patrimonial com a população residente.

A título de medida mitigatória, podemos citar como exemplo a implantação de cortina arbórea a fim de minimizar o impacto visual da implantação de uma caixa-d’água em relação à visada de uma ocorrência geomorfológica singular, como uma serra ou pico de valor paisagístico.

As medidas compensatórias deverão ser utilizadas somente nos casos em que não houver a possibilidade de prevenção ou mitigação integral dos impactos (a preservação é sempre a prioridade) e devem ser revertidas em benefício do próprio patrimônio cultural, prioritariamente o mais próximo do local afetado.

Enfim, são amplas as possibilidades dos municípios brasileiros se estruturarem para a implantação de políticas de preservação do patrimônio arqueológico urbano, capazes de conciliar o crescimento das cidades com o respeito a antigos vestígios da produção humana, efetivando o sempre preconizado desenvolvimento sustentável.

[1] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Análise dos impactos ao patrimônio cultural no âmbito dos estudos ambientais. p.21. In: RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Estudos de Direito do Patrimônio Cultural. Belo Horizonte: Forum. 2012.
[2] FOGOLARI, Everson Paulo. Conhecimento Científico e Patrimônio Cultural. p. 26. In: FUNARI, Pedro Paulo e FOGOLARI, Everson Paulo (Org.). Estudos de Arqueologia Histórica. Erechim: Habitus, 2005.
[3] Proposta de zoneamento arqueológico para o município de Curitiba. p.36. Arqueologia, Curitiba, v. 8, p. 35-60, 2004. Disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/cepa/files/2011/05/Proposta-de-Zoneamento-Arqueol%C3%B3gico-de-Curitiba.pdf. Acesso em 18/3/2018.
[4] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. P. 32-33.
[5] PLANCHET, Pascal. Droit de l’urbanisme et protection du patrimoine. Editions du Moniteur. Paris. 2009. p. 77.
[6] CHMYZ, Igor e BROCHIER, Laércio Loiola. Proposta de zoneamento arqueológico para o município de Curitiba. p.40.

 

“Marcos Paulo de Souza Miranda é promotor de Justiça em Minas Gerais, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural da Rede Latino-Americana do Ministério Público e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-Brasil).

Fonte: Conjur

 


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