O avanço legislativo e a normalização penal militar

Cassio Felippo Amaral

Temos observado, ultimamente, em decorrência do avanço legislativo que vem ocorrendo em nosso ordenamento pátrio, sobretudo com relação a leis que tratam de temas específicos, tais como, entorpecentes, violência doméstica, reconhecimento da união homossexual e outros, que, aparentemente, essas novas normas conflitam com dispositivos da legislação penal militar, deixando parecer, em rápida análise, estarem as normas castrenses ultrapassadas ou em desacordo com a Constituição Federal.

Nesse cenário, algumas vozes levantam-se contra a legislação penal militar, pleiteando seja ela revista e “equalizada” às normas mais modernas.

Entretanto, a bem da verdade, é preciso uma leitura atenta do contido no artigo 9º, do Código Penal Militar, para que possamos entender o alcance e aplicação da lei penal castrense.

Prescreve mencionado artigo o seguinte:

“Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I – os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

f) revogada. (Vide Lei nº 9.299, de 8.8.1996)       

III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum. (Incluído pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)”.

Em essência, podemos afirmar que o crime militar é tipicamente funcional, pois deriva concretamente da função profissional militar ou de assemelhado.1 A única exceção a esta regra é o crime doloso contra a vida, praticado por militar em atividade contra civil, que será julgado pela justiça comum, a partir da publicação da Lei Federal 9.299/96.

A atividade militar, por ser o braço forte do Estado, seja, no caso de nosso País, para garantia da soberania nacional, seja para garantia da lei e da ordem, por meio da coerção, trata-se de trabalho especializado, realizado por homens e mulheres previamente treinados para fazerem cumprir as normas vigentes.

É sabido que, para a manutenção da lei e da ordem, ou mesmo da soberania nacional, o Estado lança mão de seus militares, os quais são armados e equipados para fazer frente às ameaças ou perturbações da ordem estabelecida. E, pelo simples fato de terem esses agentes do Estado, à sua disposição, equipamentos e armas letais e não letais, a atividade militar necessita ser regrada com mais rigor, ao contrário do que sempre ocorreu na legislação comum.

Assim é que, por exemplo, o crime previsto no artigo 290, do Código Penal Militar, que trata do tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar, não diferencia, tal como ocorre na legislação penal comum, o usuário de substância entorpecente do traficante, com relação à pena a ser cominada, cabendo, a dosimetria da pena a ser imposta, ao Juízo Militar. Note-se, neste caso, que não há pena mínima a ser aplicada, pois o apenamento abstrato deste delito determina “reclusão, até cinco anos”.

Cabe, então, ao Magistrado Militar, face ao caso concreto, aplicar, com adequação, a pena que servirá como medida educativa e punitiva do militar que cometer esse crime.

Enquanto isso, na legislação penal comum, hoje, há diferenciação de tratamento entre o crime de posse de substância entorpecente e o crime de tráfico, haja vista que, por conta dos estudos científicos que, a cada dia, apresentam resultados mais e mais específicos, chegou-se à conclusão que o usuário de drogas ilícitas é um doente, não cabendo, a ele, a cominação de pena, mas, sim, de tratamento ambulatorial compulsório.

Pois bem. Para o militar, pode-se adotar padrão semelhante, desde que as circunstâncias do caso sob análise permitam seja utilizada a diferenciação acima exposta. O Magistrado Militar, ao invés de cominar pena ao infrator, pode considerá-lo semi-imputável ou inimputável e aplicar-lhe uma medida de segurança, determinando, para seu cumprimento, seja o militar submetido a tratamento médico ambulatorial. Ou, em situação mais branda, aplicar pena menos gravosa, v. g., cumprimento da reprimenda em regime aberto.

Mas, o que importa, aqui, é entendermos os motivos pelos quais não há diferenciação, na legislação penal militar, entre o usuário e traficante de substâncias entorpecentes.

Imaginemos um militar, no serviço de guarda do aquartelamento, munido, por exemplo, de um FAL – Fuzil Automático Leve, arma de fogo projetada para matar com eficiência, que faz uso de cocaína, ou mesmo de crack. O que pode acontecer aos colegas de farda desse usuário de entorpecente se ele, com a mente totalmente anuviada pela droga, começar a disparar sua arma a esmo? O que pode acontecer com cidadãos que estejam, nesse infeliz momento, passando defronte às instalações da Organização Militar?

Noutro exemplo, o que será da população que confia na Polícia Militar de seu Estado, se um de seus integrantes, no serviço de segurança pública, tal como policiamento ostensivo, está sob efeito dessas substâncias? O que poderá acontecer, haja vista que este policial militar está armado? Qual será a reação dele diante de qualquer situação cotidiana? E se for acionado para coibir alguma ação criminosa?

Sob outro ponto de vista, imaginemos policiais militares que passem a se gostar e, não levando em conta o fato de estarem num quartel, mantenham relações sexuais? Ou mesmo, de forma ostensiva, troquem beijos e carícias em locais públicos, envergando suas fardas?

É por isso que no Código Penal Militar há o crime de pederastia ou outro ato de libidinagem, prescrito em seu artigo 235, tratando como crime militar o ato de “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”. Notemos, aqui, que, dentro do conceito de ato libidinoso também está inserida a conjunção carnal (coito vaginal).

Além disso, consabido que locais sujeitos a administração militar tratam-se de quartéis, regiões de acampamento, áreas de manobras e exercícios, não sendo permitido, por razões óbvias, em tais domínios, a ocorrência de relações amorosas ou sexuais, seja quem for o militar e independentemente de sua opção sexual, haja vista a expressão contida no artigo em tela “…ato libidinoso, homossexual ou não,…”.

De outra parte, surgiu, recentemente, discussão acerca da aplicação, ou não, da Lei Federal 11.340/06, a chamada “Lei Maria da Penha”, em casos onde sejam casados ou unidos militares. A questão principal discutida é se ocorrer violência doméstica de um militar contra sua esposa, também militar. Aplica-se o Código Penal Militar ou a “Lei Maria da Penha”?

A resposta mais acertada, após a leitura atenta do artigo 9º, do Código Penal Militar, parece-nos ser a aplicação da “Lei Maria da Penha”, pois, dentro do remanso do lar, os cônjuges militares não estão em serviço ou em atividade funcional, não se lhes aplicando os dispositivos do Código Penal Castrense. Esse entendimento vem sendo compartilhado à quase unanimidade pelos juristas que se dedicam ao Direito Penal Militar.

Desta forma, entendemos que a legislação penal comum, por mais que esteja sempre acompanhando a evolução social, não deve, de modo algum, substituir a legislação penal militar, pois, em que pese esta normatização ter sido arquitetada no final da década de 1960, foi construída para proteger a hierarquia e a disciplina, pilares de sustentação da profissão militar.

1) BADARÓ. R. “Comentários ao Código Penal Militar de 1969”, Ed. Juriscred, São Paulo, 1972, p. 56.

Cássio Felippo Amaral é advogado especialista em Direito Ambiental pela Universidade de São Paulo. É sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados e dirige a Área de Direito Penal e Direito Penal Militar.
E-mail: cassio@pinheiropedro.com.br


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