O CAOS SEM NOVA ORDEM – E AGORA?

Inquérito controverso do STF esbarra em trama para um golpe de estado digital camuflado pelo direito legítimo à livre manifestação e crítica

 

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Ministro Alexandre de Moraes – investigações levam á existência do gabinete do ódio

 

Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*

A Polícia Federal cumpriu na manhã desta quarta-feira, 27 de maio, mandados de busca e apreensão contra aliados e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, determinados no inquérito que apura fake news e ataques contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Foram cumpridos 29 mandados no Distrito Federal, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Mato Grosso, no Paraná e em Santa Catarina. O inquérito é presidido pelo ministro Alexandre de Moraes e se arrasta desde março de 2019.

As diligências envolveram buscas e apreensões em residências e escritórios de blogueiros e youtubers bolsonaristas, bem como de empresários acusados de patrocinar os disparos de twitter e os sites desses blogueiros. Também solicitou oitiva de deputados federais e dois deputados estaduais paulistas, das hostes bolsonaristas – razão para criar uma crise de perigosa temperatura no já aquecido ambiente de conflitos na política brasileira.

O cerne da questão, que também é apontado pelo próprio Ministério Público Federal, é que as diligências, e o próprio inquérito, podem estar afetando o constitucional direito à liberdade de expressão nas redes sociais. Segundo o Procurador Geral da República, Augusto Aras, o conteúdo publicado pelos investigados é “incisivo”, mas não se confunde com “prática de calúnias, injúrias ou difamações contra os membros do STF”.

“Em realidade, representam a divulgação de opiniões e visões de mundo, protegidas pela liberdade de expressão”, diz o procurador-geral, que cita diversas manifestações de ministros do próprio STF sobre liberdade de expressão.

Blogueiros que se tornaram alvo da operação determinada pelo STF contra “fake news”

 

Blogueiros que se tornaram alvo da operação determinada pelo STF contra "fake news" (imagem - CNN Brasil)

Blogueiros que se tornaram alvo da operação determinada pelo STF contra “fake news” (imagem – CNN Brasil)

 

PECANDO NA ORIGEM

Desde o episódio do assassinato de Líbero Badaró, cuja crise resultante levou à abdicação do Imperador Pedro I do trono do império, o jornalismo brasileiro sempre esteve no centro dos grandes acontecimentos que levaram às mudanças institucionais que marcam a história de nossa Nação. Da mesma forma, o Poder Público sempre conspurcou sua legitimidade (e a autoridade, sua biografia), quando ousou atentar contra a liberdade de imprensa e cercear o jornalismo brasileiro.

Foi nesse sentido que em nome da Associação Paulista de Imprensa subscrevi, no ano passado, nota repudiando a absurda censura determinada pelo Ministro Alexandre de Morais à Revista Crusoé, impedindo a veiculação de matéria baseada em fatos extraídos de procedimento judicial, sob pretexto absolutamente questionável.

De fato, não poderia a liberdade de imprensa ser constrangida por meio de instauração do inquérito 4.781 – Distrito Federal, baixado unilateralmente pelo presidente do STF – Ministro Dias Tóffoli, em função de críticas sofridas pela Côrte, comuns em qualquer sistema democrático e mencionadas genericamente, que se prestaram a servir como pretexto para a censura.

Jamais poderia um magistrado, presidente do STF, instaurar um inquérito genérico, relativo a fato difuso ocorrente em todo canto do território nacional, baseado em artigo regimental que somente autorizaria a medida na hipótese de um delito praticado na sede do Tribunal ou suas dependências. Muito menos poderia um Ministro relator, nomeado pelo primeiro, à revelia do plenário e sem qualquer ciência à Procuradoria Geral da República, determinar diligências com base em critérios nebulosos e censurar órgãos de imprensa. De fato, não se tratava de justiça e, sim, de um atentado praticado contra a liberdade de crítica e expressão e à liberdade de imprensa. Instalara-se uma DITADURA da Toga.

A ação da Procuradora Geral da República na época foi imediata, promovendo pedido de arquivamento do expediente. Porém foi arbitrária e absurdamente ignorada pelo ministro Alexandre de Morais.

O conflito revelou uma crise institucional sem precedentes. Demonstrou que há uma ausência de controle sobre o controlador… e expôs uma falha constitucional que urge ser corrigida. Esse é o estado da arte da crise em que o país está mergulhado. A consequência lamentável é a desmoralização das instituições.

A péssima extração da atual judicatura foi capaz, infelizmente, de criar confusão entre opinião, vaidade ferida, difamação e calúnia.

Assim, que fique muito claro, o inquérito empreendido pelo Ministro Alexandre de Morais peca pela origem e caberia muito bem em um filme de ação sem super-heróis, onde o magistrado faria o papel de seu sósia, Lex Luthor, “tramando contra Metrópolis a pretexto de salvá-la”, processando o Planeta Diário e prendendo Perry White, Clark Kent e Louis Lane.

O fato é que o procedimento prosseguiu, a censura à Revista Crusoé foi superada, as conduções coercitivas de personalidades que haviam evidentemente criticado o tribunal ficaram pelo meio do caminho.
Empresários que se tornaram alvo da investifação do STF sobre fake news

 

Empresários que se tornaram alvo da investifação do STF sobre fake news (imagem CNN-Brasil)

Empresários que se tornaram alvo da investifação do STF sobre fake news
(imagem CNN-Brasil)

 

MUDANDO O FOCO DO INQUÉRITO

Porém, ante o profundo desgaste institucional, o Tribunal viu-se obrigado a alterar sua conduta e tratou de mudar o foco inicial do malfadado inquérito. Sem muito alarde, a linha de investigação simplesmente se alterou, migrando seu alvo, da “imprensa quente” para a “mídia fria”.

Explico:

O conflito de poder em razão da comunicação é um fenômeno presente na história desde os tempos da Grécia antiga. Ele se repete em ciclos, alterando seu alcance, densidade e qualidade conforme avança a tecnologia dos meios de comunicação.

Os conflitos evoluíram com a civilização humana e, com o advento dos conflitos assimétricos (também chamados de guerra híbrida ou de quarta geração), as plataformas de comunicação cindiram, gerando uma crise dentro do próprio conflito de comunicação. Essa crise envolve a evolução da potência, difusão e capilaridade da comunicação gerando emulação entre mídias quentes e mídias frias.

A mídia quente é formada pela imprensa tradicional, impressa, televisiva, radiofônica e cinematográfica – onde a informação é intrinsecamente densa, editada, fornecida de forma unilateral, com interação limitada e pressupondo uma plateia passiva. A mídia fria é composta pela televisão interativa, a mídia digital, as redes sociais, e os meios interpessoais tradicionais de comunicação – conversa pessoal, digitalizada ou telefônica – cuja informação é sensorial, com baixa densidade de informação, distribuída de forma difusa, aberta e participativa, pressupondo interatividade.

Essa sutileza digital constituiu a alteração de foco e parece ter impactado a lustrosa mente do ministro Alexandre de Morais, que reenquadrou a malfadada suprema inquisição para o cerne dos conflitos assimétricos: a mídia digital articulada na internet das coisas e impulsionada pelas redes sociais. Com efeito, é nesse campo que vige o foco efetivo das chamadas fake news, contaminadas por vários fenômenos que podem de fato esbarrar para condutas que demandem tutela judicial.

Essas mídias “igualam” assimetrias, pois podem ser produzidas e dirigidas por qualquer um dos atores presentes no conflito, tenham eles origem pública ou privada.

Alexandre não inovou, seguiu a trilha que já estava sendo ditada pelo parlamento nacional, na chamada CPI das Fake News.

No campo digital, “fake news” é produzir matérias mentirosas ou boatos por meio de memes e spam. Isso pode resultar em danos efetivos contra pessoas e instituições, alterar o ânimo da opinião pública e distorcer resultados eleitorais.

Com esse foco, o ministro buscou legitimar o inquérito cuja legalidade de origem permanece questionável. Abandonou, com esse desvio, um campo pleno de desconfiança de que as ações visavam atingir quem atingira a vaidade pessoal dos membros da côrte ou antagonizara ideologicamente com estes.

Há, é fato, uma sutileza. Chamar ministros de “vagabundos” pode constituir sim um “xingamento” ofensivo. Porém, dizer que temos um “tribunal vagabundo”, na circunstância do dito, é geralmente uma crítica.

Era preciso, no entanto, modular o escopo dessa “investigação” para não reforçar a mediocridade reinante.
Deputados bolsonaristas que viraram alvo das investigações do STF sobre Fake News

 

Deputados bolsonaristas que viraram alvo das investigações do STF sobre Fake News (imagem CNN- Brasil)

Deputados bolsonaristas que viraram alvo das investigações do STF sobre Fake News (imagem CNN- Brasil)

 

ACERTANDO NO QUE NÃO VIU (OU VIU…)

Foi então que, errando o foco original, o inquérito esbarrou em algo muito mais complexo e mesmo assustador.

Vamos juntar as peças.

De início, estava patente a tentativa de “blindagem” contra a ação investigativa dos críticos ao tribunal – mas após a bobagem de terem feito buscas na casa do General Paulo Chagas, cujo direito de opinar é o de qualquer cidadão, resolveram abandonar essa linha para se dedicar a outra, essa sim, com algum fundamento, dos twitteiros e youtubers bolsonaristas.

No decorrer das diligências e oitivas de personagens importantes, como os ex-aliados do governo Bolsonaro, Deputados Joice Hasselmann e Alexandre Frota, foi-se desenhando nos autos que havia toda uma estrutura montada, não para dar suporte propagandístico ou de informação digital ao governo mas, sim, uma organização de caráter cibernético, orientada para duas vertentes claras: disseminar o ódio às instituições republicanas e seus componentes – de forma seletiva e às vezes ocasional (quando há demanda específica), e repisar continuadamente a tese do golpe de estado camuflado sob o manto de uma “intervenção militar constitucional”.

Segundo a linha de investigação adotada, essa organização parece agir de forma coordenada e totalmente subordinada aos interesses expressos pelo Presidente da República – porém, não apresenta ligação direta com esse. Pelo contrário, parece subordinar-se a uma cúpula de organização denominada “gabinete do ódio”.

Ao contrário do que muitos imaginam, incluso na imprensa “quente”, o “gabinete do ódio” não é um organismo original. Ele na verdade funciona como uma espécie de PAC ou super-PAC – sigla em inglês para “political action committee”, uma forma de organização política independente dos partidos, existente nos EUA.

O PAC promove agendas específicas e arrecada verba para fazer lobby por elas, sendo que os Super-PACs configuram uma categoria mais agressiva desses comitês, com autorização para gastar dinheiro de forma ilimitada em nome de um determinado líder ou candidato, ou mesmo se dedicar a atacar um ou vários adversários.

A estrutura do “gabinete do ódio”, portanto, é totalmente copiada do Partido Republicano dos EUA, porém, não prevista legalmente na legislação brasileira. O volume de tipos criminais infringidos pelas campanhas coordenadas por esse Super-PAC bolsonarista, se forem confirmadas as suspeitas e evidências, será de espantar, na medida em que atinge a imagem, a honra e a reputação de funcionários, políticos, profissionais de várias categorias e seus familiares, bem como empresas e corporações públicas e privadas – sendo que a intenção é unívoca no sentido de revidar e blindar a imagem do presidente e manter um clima de constante enfrentamento eleitoral- visando eliminar qualquer liderança que possa antagonizar o líder em futuras eleições.

Mas há algo ainda mais preocupante, que é o “alvo secundário” da organização. Esse “super PAC parece articular o bombardeio sistemático dos alicerces constitucionais da República, visando sua desestabilização. Como se abstrai do contido no relatório que justifica as diligências efetuadas na mega operação realizada na data de 27 de maio, parece haver um suporte digital de propaganda e contra-propaganda – tal qual o vetusto “agit-prop” – direcionado pelas organizações “revolucionárias” para um eventual golpe de estado.

Nesse sentido, para além da liberdade de expressão e opinião, o massacre de fake news, que mói reputações, intimida e polui todas as sedes de debate e discussão, a própria liberdade civil e a liberdade de imprensa tornam-se vítima dessas ações – e isso parece ser o foco do inquérito reconfigurado do STF.

CONLUIO DIGITAL OU CONSPIRAÇÃO?

Nesse campo, é preciso reavaliar o procedimento para compreender o andamento da dita investigação.

É importante alertar que, ao contrário da legislação norte-americana, não há no Brasil a figura penal da “conspiração”, tal qual aplicada no sistema federal dos EUA. Por aqui há uma conjugação de normas que precisam ser realinhadas deontologicamente. É o caso do conluio previsto no art. 152 do Código Penal Militar, o art. 288 e 288-A do Código Penal (formação de quadrilha) – com a redação da Lei 12.270/2012 (voltada para organizações criminosas e paramilitares) e a antiga Lei 1.802 de 1953, que define crimes contra a Ordem Política e Social – não revogada pela Lei de Segurança Nacional, e que anda muito esquecida…

Todo esse imbróglio parece seguir um ciclo repetitivo. Afinal, por ocasião da campanha eleitoral, nosso então candidato, Jair Bolsonaro, foi vítima de organização similar, mantida pelo esquema da grande mídia, redes sociais e blogs sujos petistas. A diferença, agora, está na sofisticação cibernética e na virulência do conteúdo.

Por óbvio que o Establishment já declarou guerra a esse tipo de estrutura, não só aqui, como na Europa e nos Estados Unidos – visando principalmente barrar o avanço da direita populista cujas lembranças remetem à Segunda Guerra Mundial…

É preciso, nesse sentido, diferenciar o movimento neo-conservador, em ascensão no mundo, com o populismo de direita, que parece estar surfando nessa onda.

Não por outro motivo, os verdadeiros Super-PACs norte-americanos já estão exigindo a manutenção do ambiente livre na Internet, para evitar uma censura ideológica assimétrica imposta pelos administradores privados das redes sociais.

O próprio Presidente Trump pretende combater esses movimentos de contenção da direita populista, “em nome das liberdades civis” – mas no entanto, como no caso brasileiro, parece querer mesmo pressionar as redes contra as liberdades civis, favorecendo a poluição de mensagens agressivas e sectárias nas redes sociais.

Diferente dos EUA, no Brasil há supedâneo para um avanço nessa discussão, por meio do chamado marco legal da internet.

Ou seja, está faltando um grande debate jurídico nacional em torno desse tema, antes que ele caia de vez na seara criminal.

Organizações privadas já se mobilizam para desidratar economicamente essa ação de direita mundo afora, como é o caso do Sleeping Giants, tem 250.000 seguidores e sua descrição diz: “Um movimento para tornar o fanatismo e o sexismo menos lucrativos”.

Assim, um inquérito que começou completamente torto, passou a buscar um foco específico. Se de fato, não é assim que se procede, parece que a “picaretagem judiciária” atingiu uma caixa preta com conteúdo explosivo, enterrada no quintal da República.

CAOS SEM NOVA ORDEM

O conflito mostra que estamos todos próximos de uma ruptura institucional, que de forma alguma pode resvalar para a perda do regime democrático, e que passa por uma necessária reforma constitucional, enterrando os defuntos que jazem insepultos no bojo da Constituição da moribunda Nova República.

O próprio STF deveria ser reconfigurado. Da forma como está, de fato não atende mais ás demandas complexas do Regime Democrático, e isso está claro para o povo brasileiro e para qualquer operador do direito que honre o diploma conquistado com méritos.

Claro que essa demanda encontra resistência na jusburocracia. E sobre isso há extenso material crítico, publicado e assinado, por este subscritor e por vários juristas de todas as alas doutrinárias conhecidas.

Por outro lado, é patente que há uma Síndrome de Janus, que afeta o executivo federal. A presidência da república há tempos emite sinais trocados para o ambiente político, e ao mesmo tempo que busca conferir governabilidade à sua administração, investe em uma campanha de confrontos sistemáticos que desestabiliza a Ordem Constitucional e fragiliza as instituições da República.

Isso precisa, de fato, ter um fim, caso contrário, o caos seguirá sem nova ordem, e não será com uma ditadura “bolso-chavista” que se resolverá os impasses que acometem nossa sagrada e festejada democracia.

Nesse ambiente medíocre… sobram insultos, pululam autoridades, escasseia a razão e faltam advogados.

 

afpp18*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”. Foi integrante da equipe que elaborou o plano de transição da gestão ambiental para o governo Bolsonaro.

 

 

Fonte: The Eagle View
Publicação Dazibao, 28/05/2020
Edição: Ana A. Alencar

 


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