O cidadão, a ação popular e a proteção do meio ambiente

kids-environment2

 

Por Álvaro Luiz Valery Mirra*

As ações coletivas, conforme se tem analisado, constituem importante mecanismo de participação popular na proteção do meio ambiente. Por seu intermédio, o sistema processual abre à sociedade a via da jurisdição civil para a defesa do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, permitindo, com isso, o controle social sobre a legalidade e a legitimidade de ações e omissões públicas e privadas que interferem na qualidade ambiental[1].

Sob a ótica dos sujeitos intitulados à participação pelo processo civil na tutela do ambiente, a participação pode assumir as formas de participação direta e de participação semidireta. A participação judicial direta na defesa do meio ambiente é aquela exercida pelos indivíduos e cidadãos, enquanto a participação semidireta, a exercida pelos denominados entes intermediários, ou seja, órgãos, organismos, entidades e instituições sociais secundárias que atuam como intermediários entre os indivíduos e os representantes eleitos pelo povo (associações civis, Ministério Público, Defensoria Pública)[2].

No que se refere à participação judicial direta na defesa do meio ambiente, discute-se, em doutrina, sobre a conveniência da admissão da legitimação ativa de indivíduos e cidadãos para a propositura demandas coletivas ambientais.

O maior problema na matéria, segundo se tem entendido, está na dificuldade de se conseguir a mobilização das pessoas para, isoladamente, buscarem a proteção jurisdicional do meio ambiente. Com efeito, considera-se pouco provável que o cidadão se sinta estimulado a envolver-se sozinho em complexas batalhas judiciais para a defesa de um direito coletivo que, apesar de ser acima de tudo seu próprio, não tem, no mais das vezes, repercussão positiva direta e imediata em sua esfera pessoal e patrimonial. E sem a perspectiva de obtenção de uma vantagem pessoal concreta na demanda, notadamente de ordem econômica, dificilmente alguma pessoa aceitaria assumir os custos e os riscos, sobretudo financeiros, de um litígio do porte daquele que normalmente envolve a matéria ambiental[3]. Ademais, teme-se igualmente que, diante da hipossuficiência do cidadão comum, não apenas sob o ponto de vista econômico como também sob prisma técnico e informativo, fique ele impossibilitado de desenvolver em juízo a melhor defesa do meio ambiente, ao defrontar-se com degradadores não raras vezes dotados de grande capacidade financeira e organizacional para fazer frente aos litígios[4]. Por essas razões, vê-se frequentemente com reservas a iniciativa individual nas demandas coletivas[5].

Tais preocupações são importantes e merecem, por certo, consideração. Todavia, cumpre lembrar que no Brasil houve a consagração do direito de todos ao meio ambiente, como direito fundamental de titularidade coletiva, e o reconhecimento do dever, também de todos, de defender e preservar o patrimônio ambiental (artigo 225, caput, da CF). Se assim é, impõe-se, por imperativo lógico, que se abra a todos os titulares desse direito e a todos os destinatários desse dever — isto é, todos os indivíduos que compõem o grupo social — a possibilidade de atuar na defesa do meio ambiente, inclusive pela via jurisdicional[6].

Expressiva, a respeito, a análise de Marco Paulo de Souza Miranda, em artigo recente sobre o tema nesta coluna[7].

No Direito brasileiro vigente, a participação direta na defesa do meio ambiente, por intermédio do processo jurisdicional, é viabilizada, sobretudo, pela ação popular, instituto processual apto a permitir iniciativas individuais na matéria.

Nos termos do artigo 5º, LXXII, da CF, qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo a diversos bens e valores, entre os quais o meio ambiente e o patrimônio cultural. Em nível infraconstitucional, a ação popular encontra-se disciplinada pela Lei 4.717/1965, recepcionada no ponto pela nova ordem constitucional, com semelhante disposição a respeito da legitimidade ativa para a causa (artigo 1º, caput).

Tradicionalmente, entende-se por cidadão, como sujeito legitimado à propositura de demandas populares, o indivíduo nacional que esteja no exercício dos direitos políticos[8]. Não por outra razão, a LACP, no parágrafo 3º do artigo 1º, exige que a petição inicial da ação popular venha acompanhada de título de eleitor ou documento equivalente, como prova da cidadania do demandante. Dessa forma, titulares do poder de agir em juízo na defesa do meio ambiente, pela via da ação popular, nessa concepção clássica, não são todos os indivíduos cotitulares do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas tão só os indivíduos de nacionalidade brasileira dotados de capacidade eleitoral ativa e passiva[9].

Ocorre, porém, que tal noção tradicional de cidadão, restrita ao indivíduo eleitor, vem sendo objeto de questionamentos, notadamente a partir da entrada em vigor da Constituição de 1988. Segundo Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Marcelo Abelha Rodrigues e Rosa Maria Andrade Nery, ao confrontarem o disposto no artigo 1º, parágrafo 3º, da Lei 4.717/1965 com as normas do artigo 5º, caput, e inciso LXXIII, e do artigo 225, caput, da Constituição Federal:

“(…) O legislador constituinte não desejou restringir a legitimidade para a propositura da ação popular, pois não há nenhum dispositivo constitucional que determine que o conceito de cidadão seja delimitado ou restrito. Bem pelo contrário, são as melhores regras de interpretação e hermenêutica que determinam que as garantias e princípios fundamentais dos indivíduos, tal qual é a ação popular, sejam extensivamente interpretados. Destarte, ao se garantir a todos (rectius = povo) o direito a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, essencial à vida com qualidade (direito fundamental à vida), desejou-se que brasileiros e estrangeiros residentes no País, eleitores ou não, enfim, todos aqueles que são passíveis de sofrer os danos e lesões ao meio ambiente, estivessem dotados de armas e instrumentos contra a degradação dos bens e valores ambientais. A ação popular é um desses instrumentos”[10].

Em acréscimo à argumentação acima reproduzida, vale mencionar que, no Estado Democrático-Participativo, consagrado na Constituição de 1988, os próprios direitos políticos ganharam maior extensão e ultrapassaram o restrito campo da capacidade eleitoral ativa e passiva, do direito de votar e ser votado, para incluir a possibilidade de ampla participação popular nos assuntos de interesse comum. No Estado da democracia participativa, os direitos de participação política são direitos que agregam, à sua expressão individual tradicional, uma dimensão coletiva e social, por intermédio da abertura de canais de participação direta de indivíduos e da participação semidireta de entes intermediários[11].

Com isso, atualiza-se, igualmente, a concepção de cidadania, entendida como cidadania social, expressa na participação política ativa, direta e semidireta, na vida da sociedade, e não mais apenas como cidadania política, restrita ao exercício periódico do direito político de eleger e ser eleito. Cidadão, nesse sentido, à luz do artigo 1º, II, da CF, é não só o indivíduo nacional capaz de eleger os seus representantes e ser eleito, como, ainda, o indivíduo, nacional ou estrangeiro, a quem se reconhece, para além da capacidade eleitoral ativa e passiva, a capacidade de participar ativa e diretamente, individualmente, em grupo ou por meio de organismos e instituições sociais secundárias, nos assuntos do governo e da sociedade[12].

Nessa linha de entendimento, cidadãos, no Brasil, sob a ótica da participação pública ambiental, devem ser considerados todos os indivíduos integrantes da sociedade, tanto nacionais quanto estrangeiros residentes no país, a quem se reconheceu, sem discriminação, a titularidade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, independentemente da concomitante titularidade do direito de votar e ser votado. E são todos eles os sujeitos legitimados, em caráter concorrente e autônomo, para a propositura da ação popular em defesa do meio ambiente[13].

Reforça, ainda, o quadro de prestígio da iniciativa judicial em defesa do meio ambiente pelo cidadão, na concepção atualizada de cidadania acima exposta, a disciplina do custo do processo trazida pela CF. De acordo, uma vez mais, com o artigo 5º, LXXIII, da Carta Magna, o autor popular, salvo comprovada má-fé, fica isento das custas judiciais e dos encargos decorrentes da sucumbência.

Vê-se claramente que o constituinte de 1988 previu a gratuidade da ação popular para o demandante, independentemente da condição financeira deste, excetuada a hipótese de má-fé processual. De fato, na matéria, o autor popular está dispensado do adiantamento das despesas processuais, quaisquer que sejam elas, sendo que, na eventualidade do julgamento de improcedência do pedido inicial, fica ele, salvo litigância de má-fé, exonerado do pagamento dos encargos decorrentes da sucumbência, incluídos nessa exoneração os honorários dos advogados dos réus vencedores[14].

No ponto, vale observar que, apesar de o texto constitucional se referir apenas à isenção de custas na ação popular, as quais normalmente correspondem à taxa judiciária devida ao Estado pelo exercício da jurisdição, a hipótese normativa é de isenção de despesas processuais propriamente ditas, abrangentes, assim, da remuneração devida aos auxiliares permanentes e eventuais da Justiça, inclusive peritos, e dos emolumentos cobrados pelas serventias não oficializadas, para o caso da prática de atos extrajudiciais necessários à publicidade das decisões judiciais.

Essa é, com efeito, a única interpretação possível da norma constitucional, pois a gratuidade da ação popular é condição inafastável para tornar concreta e factível a participação do cidadão na defesa do meio ambiente pela via judicial. Conforme já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da lavra do ministro Humberto Martins, “a ação popular deve ser estimulada e enaltecida pelo Poder Judiciário, na medida em que os autores se expõem, agem sem as prerrogativas típicas de agentes integrantes das carreiras de Estado e, ainda, prestam serviço gratuito ao interesse público”[15]. Daí não se poder carrear ao cidadão demandante nenhuma despesa pela sua atuação em juízo na defesa de um direito de toda a coletividade.

Ademais, nos termos do artigo 12 da LAP, a sentença de procedência do pedido na ação popular incluirá, sempre, na condenação dos réus, o pagamento ao autor das despesas extrajudiciais diretamente relacionadas com a demanda, além dos honorários advocatícios. Cuida-se, indiscutivelmente, de ampla proteção legal à situação própria e específica do autor popular, na medida em que se prevê a imposição aos réus vencidos, no próprio feito instaurado, do reembolso não só de eventuais despesas judiciais como também de todas as despesas extrajudiciais realizadas pelo demandante para a defesa em juízo do direito de todos aos meio ambiente ecologicamente equilibrado, a incluir, por certo, os valores despendidos pelo autor popular com a realização de perícias e vistorias previamente ao ajuizamento da demanda e com o patrocínio da causa por advogado, vale dizer, os honorários contratuais[16].

Quanto aos legitimados passivos, aos atos e omissões suscetíveis de impugnação e à amplitude dos provimentos jurisdicionais passíveis de emissão na ação popular, remete-se o leitor ao já referido artigo de Marcos Paulo de Souza Miranda, veiculado nesta coluna sobre o tema[17].

1 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, especialmente, p. 174 e ss.
2 MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 175-176.
3 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 24-29; GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos interesses difusos. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord.). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 33-34.
4 Sobre o tema, RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo civil ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 82-83.
5 Sobre o tema, VENTURI, Elton. Processo civil coletivo: a tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil – perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 169-172; GIDI, Antonio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo: a codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 224-240.
6 MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 224.
7 MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Qualquer cidadão pode acionar o Judiciário para a defesa do patrimônio cultural. ConJur, coluna “Ambiente Jurídico”, 13/1/2018.
8 SILVA, José Afonso da. Ação popular constitucional: doutrina e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 163-164; MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 190-191; JUCOVSKY, Vera Lúcia R. S. Instrumentos de defesa do meio ambiente: ação popular e participação pública: Brasil-Portugal. Revista do Tribunal Regional Federal – 3ª Região, São Paulo, n. 39, p. 48, jul./set. 1999; FERRARESI, Eurico. Ação popular, ação civil pública e mandado de segurança coletivo: instrumentos processuais coletivos. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 179.
9 Na jurisprudência: STJ – 2ª T. – EDcl no REsp 538.240/MG – j. 17/4/2007 – rel. min. Eliana Calmon; TJ-SP – 6ª Câmara de Direito Público – Reexame Necessário 1000779-48.2016.8.26.0269 – j. 6/11/2017 – rel. des. Sidney Romano dos Reis.
10 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha; NERY, Rosa Maria Andrade. Direito processual ambiental brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 223-225. Ainda: VITA, Heraldo Garcia. O meio ambiente e a ação popular. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 41-44; LEITE, José Rubens Morato. Ação popular: um exercício de cidadania ambiental? Revista de Direito Ambiental, n. 17, p. 132-133; SILVA, Flávia Regina Ribeiro da. Ação popular ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 147-151; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. Curso de direito processual civil coletivo. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 72-73; ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 303, 403, 524-526.
11 MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 232.
12 MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 232. Sobre o tema da cidadania social, para além da política, ver VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo. Revolução processual do direito e democracia progressiva. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ; FAPERJ, 2002, p. 337-491; LOPES, Ana Maria D’Ávila. A cidadania na Constituição Federal brasileira de 1988: redefinindo a participação política. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marque de; BEDÊ, Fayga Silveira (Coord.). Constituição e democracia: estudos em homenagem ao Prof. J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 27.
13 Em sentido próximo ao aqui exposto, ver STJ – 2ª T. – REsp 1.242.800/MS – j. 7/6/2011 – rel. min. Mauro Campbell Marques.
14 MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 563.
15 STJ – 2ª T. – AgRg no REsp 905.740/RJ – j. 4/12/2008 – rel. min. Humberto Martins.
16 MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 564.
17 Qualquer cidadão pode acionar o Judiciário para a defesa do patrimônio cultural. ConJur, coluna “Ambiente Jurídico”, 13/1/2018.

 

*Álvaro Luiz Valery Mirra é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

Fonte: Conjur

 


Desenvolvido por Jotac