O QUE ABUNDA, PREJUDICA

O Brasil tem mais faculdades de direito que todo o resto do mundo somado.

 

direito

Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro

No país do ufanismo sem causa, até tragédia é noticiada como conquista “grandiosa”. É o caso da inflação de cursos jurídicos ocorrente no Brasil.

Bacharéis abundam e prejudicam

“O Brasil tem 1.313 faculdades. A grandiosidade desse número fica evidente quando se compara com o fato de o mundo possuir 1.150 escolas de Direito. Isso significa que o Brasil possui 53% das faculdades de Direito do mundo” (*1).

Os números foram fornecidos pelo professor Jorge Amaury Maia Nunes no Painel 13 da XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, realizada em novembro de 2018. O evento é patrocinado pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, entidade responsável por opinar na criação de cada curso…

Há um ditado romano constantemente utilizado no mundo jurídico: quod abundate non nocet (o que abunda não prejudica). A frase, contudo, configura um paradoxo face à infestação de cursos jurídicos no Brasil – verdadeira praga suicida.

De fato, o que por aqui abunda, prejudica.

Pela lógica, com mais da metade dos cursos jurídicos de todo o mundo, nosso país deveria se destacar pela excelência nos campos da Justiça, da segurança jurídica, da organização legal dos negócios de Estado, das obrigações e direitos do cidadão.

No entanto,nossa lógica é diferente. Conseguimos a proeza de formar os piores profissionais, empoderar a pior jusburocracia e sofrer com a mais confusa e abundante legislação do planeta.

Sofremos, também, com a mais cara, lenta e ineficaz justiça do mundo.

Em suma, produzimos centenas de milhares de bacharéis, todo ano, na mesma proporção que degradamos direitos e garantias de nossos cidadãos.

História implacável

O poeta Pablo Neruda declamava sermos livres para fazermos nossas escolhas… e prisioneiros das consequências .

Em 1997, quando haviam apenas 260 cursos jurídicos no Brasil – e esse número já era absurdo, ocorreu um fenômeno de mudança com renovação de lideranças nas eleições dos Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados, em vários estados brasileiros e, posteriormente, no Conselho Federal.

O mote para a mudança de rumos era que a OAB se encontrava nas mãos de uma “elite ultrapassada”, desconectada com as novas demandas dos jovens advogados, obstruindo o reconhecimento de novos cursos e dificultando os exames de Ordem. Devia também, a principal entidade do direito brasileiro, segundo essas lideranças, afastar-se da política, para “cuidar melhor da profissão do advogado”.

O discurso adotado, claramente populista, encobria um forte lobby do status quo contra a entidade maior da advocacia brasileira.

Na verdade, a troca de lideranças foi fortemente incensada por governos tucanos e petistas, incomodados com a postura crítica da entidade, então muito combativa, fortalecida pelo impeachment imposto a Fernando Collor e pela recente reestruturação representada pela Lei 8.906 de 1994 – seu novo Estatuto.

A campanha por mudança também era inflada pelas corporações de juízes e promotores – ressentidas com a postura da OAB em prol do controle externo da magistratura e do Ministério Público. O movimento também era, outrossim, apoiado pela CBF – Confederação Brasileira de Futebol e suas confederações afiliadas, preocupadas com a interferência do organismo nas articulações para uma CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito, no Congresso Nacional.

Por fim, as Universidades Particulares financiavam toda e qualquer oposição que “modulasse” a conquista legal representada pelo inciso XV do art. 54 do Estatuto da Advocacia, que dispunha (e dispõe) sobre a necessária oitiva do Conselho Federal da OAB para autorização de novas faculdades de direito.

O fato é que, renovadas as lideranças e consolidada a nova política da OAB, ainda que louváveis várias de suas iniciativas, sua conduta arrefeceu, de tal forma que hoje, até curso de tecnólogo paralegal é aprovado pelo Ministério da Educação, á revelia do que pensa a entidade.

A história foi implacável com a escolha dos advogados. O processo de degradação da liderança política e institucional da OAB, em duas décadas, tornou a advocacia prisioneira das consequências, fragilizando não apenas o profissional advogado, como toda a cidadania.

 

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Os fatos não mentem

Os fatos são notórios. Desde o final da década de 1990, o ativismo judicial grassou na magistratura e abusos se multiplicaram contra cidadãos. Direitos foram suprimidos sob os mais variados pretextos, inclusive os justos…

As disparidades nas carreiras jurídicas, por outro lado, dispararam. Salários nas carreiras públicas engordaram sem qualquer contrôle enquanto na atividade privada advogados viram-se progressivamente proletarizados, enfrentando salários e honorários cada vez mais aviltantes. Esse contrasenso, inadmissível em qualquer país capitalista, é revelador da distrofia do Estado sobre o cidadão e a iniciativa privada.

A formação maciça de profissionais sem qualificação adequada inflacionou o mercado pelo excesso de mão de obra. O fenômeno gerou, na opinião do professor Nunes, “a venda de sonhos e a autofagia” (*2). Ainda que a cada dia se torne mais rígido, o exame de Ordem não contém a avalanche de bacharéis.

Esta autofagia gerou outra grave distorção: o surgimento dos “cartéis de padarias jurídicas”, dominando mercados específicos, inclusive internacionalizados, produzindo impressionante concentração econômica no mercado do direito – da simples cobrança de títulos executivos em massa ao sofisticado lobby jurídico.

A distrofia dos estamentos públicos, a proletarização do profissional liberal e a cartelização do mercado, conspurcaram a advocacia nacional – trincheira da cidadania.

Sem capacidade de obter um correto patrocínio para suas causas ordinárias, o cidadão tornou-se um ator passivo, hiposuficiente, atormentado diariamente por todo tipo de tutela estatal exercida em seu nome. A sociedade viu-se excluída das padarias jurídicas cartelizadas e confiscada pela jusburocracia.

O resultado não poderia ser outro. Hoje, testemunhamos o velório de corpo presente do Direito Brasileiro.

Hora de repensar a Ordem

Os fenômenos da distrofia estatal e da cartelização no setor da advocacia deveriam estar sendo analisados e tratados com muito critério pela Ordem dos Advogados do Brasil – por lei definida como a guardiã primeira da lisura profissional dos que operam o Estado de Direito.

A inflação do mercado pela explosão de escolas de direito e de formação paralegais, deveria também preocupar os seculares Institutos de Advogados, as associações advocatícias e sindicatos.

A proliferação de cursos jurídicos, por outro lado, esfrega na cara dos poderes da República um tumor virulento de distrofias e assimetrias que, se não for extirpado, irá matar a Justiça e a democracia… e em pouco tempo.

Legislativo, Judiciário e Executivo deveriam se debruçar sobre a questão pois, ao que tudo indica, em breve a questão estará montada sobre esses poderes.

A ruptura, portanto, será iminente, e para estancar o mal, será necessário por o dedo na ferida.

Se não ocorrer uma firme interrupção desse processo, um corte radical no volume de fábricas de bacharéis e um resgate da dignidade e prerrogativas da verdadeira advocacia, a redução das liberdades e garantias fundamentais, nesse fenômeno de rupturas e mudanças estruturais que está por vir, será então inevitável.

Notas:
*1 – http://www.oabsp.org.br/noticias/2017/11/advocacia-discute-ensino-juridico-etica-e-exame-de-ordem-na-conferencia-nacional-1.12104
*2 – idem

 

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Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.

 

Originalmente publicado em The Eagle View

 

 

 

 


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