O “REGIME DOS SUSPEITOS” DE RUI BARBOSA E A GRAMPOLÂNDIA DE HOJE

LENDO RUI BARBOSA E REDESCOBRINDO A DIGNIDADE REPUBLICANA

Rui Barbosa

Rui Barbosa denunciava a indignidade intrínseca da espionagem e da delação

 

Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro

Vivenciamos tempos difíceis, em que a intimidade e a dignidade se esfarelam corroídas pelo câncer invasivo do Estado Policial.

Ainda que meritórios os esforços persecutórios e judiciais no sentido de combater o grande mal representado pelo terrorismo, pela corrupção governamental e pelo crime organizado, ainda assim, o rastro de vidas destruídas por mera suspeita, honras arrancadas por entendimentos parciais destacados de contextos, e, sobretudo, a licenciosidade resultante do uso contínuo de um método que antes de tudo deveria ser extremamente controlado, acaba por corroer indivíduos, governos, democracias, nações e relações internacionais.

Rui Barbosa, ainda no século XIX, já nos alertava para o perigo inserto nesse instrumento “republicano” da espionagem, combatida internacionalmente por nosso governo e vários outros junto às Nações Unidas – por ocasião do escândalo da divulgação das gravações efetuadas pela Agência de Segurança Nacional norte-americana e, no entanto, praticada em larga escala pelo judiciário brasileiro, a título de controle criminológico e social…

Ensinava o velho mestre:

“A espécie de corrupção que ela desenvolve, que tem desenvolvido, é a extinção pública a hipocrisia, a inveja e o rancor; é a concorrência aberta entre os energúmenos de nascença e os energúmenos de interesse; é sistema de seguro mútuo para a ganância e a ferocidade, aliadas sob o engodo da impunidade oficial e da gratidão administrativa. A polícia, órgão da paz nos estados livres, previne e descobre os delitos; a espionagem, órgão do ódio nos estados oprimidos, fomenta e elabora os crimes. Montesquieu disse, no Espírito das Leis: ‘A espionagem seria talvez tolerável, se pudesse incumbir-se a homens honrados; mas a infâmia necessária das pessoas, nesse oficio, pode habituar-nos a ajuizar a infâmia das coisas.’ “

Nasci e cresci, (como Sartre), em meio a uma biblioteca, que se espraiava nas salas, corredores e quartos da casa de meus pais, um sobrado de classe média no bairro da Aclimação.

Ali, seguindo o hábito deles, passei a compulsar os livros, ler trechos, investigar e, ter o prazer de, procurando determinado tema, me deparar com outro igualmente interessante. Isso me deu uma capacidade ímpar de remissão, hoje turbinada pela cibernética.

Embora, quando da mudança de sede de meu escritório, em conjunto com meu pai, tenha resolvido doar dezenas de milhares de livros (quatorze prateleiras de mogno repletas e em fila dupla), para a Faculdade de Direito Zumbi dos Palmares, aqui em São Paulo, reservamos algumas preciosidades para continuarmos a fazer aquilo que nenhum dos jovens advogados hoje pratica: consultar e folhear livros…

Foi assim que, buscando doutrina antiga para um problema novo (não resolvido pela doutrina nova, justamente por não conhecerem nossos jovens doutrinadores a doutrina antiga), encontrei uma pérola num dos volumes da coleção completa de Rui Barbosa (sim, nós a temos): um manifesto violento contra a espionagem oficial.

Por se tratar de texto inserido numa coleção muito especial, editada pelo Ministério da Educação em 1949, pelo Ministro Gustavo Capanema – de apenas 3000 exemplares – entendi importante trazê-lo à luz para ser lido e citado por colegas, juristas e cidadãos que queiram, efetivamente, construir um edifício republicano que fale a linguagem da democracia e, não, uma torre de babel, em prol da indignidade.

Segue o texto:

RUI BARBOSA

Rui Barbosa em 1893

Rui Barbosa em 1893

A ESPIONAGEM

Por mais que se tenha estabelecido, neste país, o vazio moral, ainda a atmosfera das consciências não perdeu, entre nós, a tal ponto a vibratilidade, que a impressão de certos escândalos oficiais possa apagar-se de um dia para outro, mormente quando são de natureza contínua e pertinaz, como o que encima hoje o seu nome estas linhas.

Na espécie dessas misérias, de longa e lamentável vibração, a que os meios mais resfriados não poderiam resistir, estão indubitavelmente os fatos, de aparência policial, mas de alcance muito mais amplo, a que aludiu, há dias o Jornal do Comércio, relatando as cenas de espionagem, que foi teatro a casa de um dos ministros demissionários e objeto a pessoa do redator principal dessa folha.

Os episódios de um cômico baixamente desprezível, mas ao mesmo tempo, de uma dolorosa tristeza, em que o nobre ex-ministro da marinha viu figurar, no respeitável asilo de sua casa, a polícia republicana agachada na pessoa de um copeiro, atrás da porta, com a orelha inquisitória à escuta de conspirações aninhadas entre o ilustre almirante e sua família, devem ter despertado nos espíritos honestos a indignação e a vergonha.

Para os membros resignatários do governo atual, porém, deixem-nos dizê-lo sem ânimo de recriminação, o espetáculo havia de ter o sabor duplamente amargo de uma lição merecida; porque esse estranho sistema de assegurar a paz, a moralizar a ordem pública, não data da exoneração de ss. Exas. Não. Ele nasceu quase com o governo, em que ss. Exas. tiveram papel tão eminente, e a ele deve esse governo, em grande parte, os erros incuráveis, que sobreviveram à recomposição do gabinete, graças ao orgulho insolente da força, á obstinação satisfeita do erro, ao prazer oficial do escândalo, que vai passando, entre nós, dos indivíduos poderosos aos corpos deliberantes, por essa ilusão do amor próprio, que nas almas violentas, confunde a impenitência com a honra, a submissão à lei com a fraqueza.

A espionagem politica, levada, por assim dizer, até ao coração dos perseguidos, esse gênero réptil de perseguição, cuja afronta o ex-ministro da marinha experimentou no ponto mais sensível da esfera de suas relações, no seio de seu próprio lar, não surgiu, imprevista, da Rua Lavradia, com as cartas ministeriais de 27 de abril, como os espectros do medo ao tanger da meia noite. Desde que, ao estoirar da reação, que se chama por antífrase legalidade, o estilo presidencial dividiu o país em homens de bem e bandidos, em republicanos e restauradores, em bons brasileiros e inimigos da pátria, inscrevendo na primeira classe os amigos e na segunda os adversários da politica atual, ficou virtualmente proclamado no país o regime dos suspeitos, versão moderna da “Lei da Majestade”, que, sob os césares latinos, criando o crime de atentado “contra a grandeza e a dignidade do povo romano”, entregou a sociedade aos delatores.

A demolição geral das constituições dos Estados, acobertada com o pretexto escandaloso de desforra contra a ditadura de 3 de novembro, como se um principio dilacerado se restabelecesse dilacerando-se de novo, povoou de sombras de conspiração a consciência do poder. Daí em diante entramos no regime do terror militar, apoiado na delação. Foi ela que inspirou o estado de sítio, quem ditou os decretos de 10 e 12 de abril, quem escreveu o rol dos proscritos e espoliados, cuja defesa a anistia amordaçou, quem continua a encher as ruas de boatos, o mundo oficial de calúnias, as famílias de sobressaltos, a politica de ciladas e injustiças e vinganças. Esse hospede infame, de cuja visita se queixa o nobre ex-ministro, profanou outros lares antes do seu. Há mais de um ano que ele sitia e invade as nossas casas, devassa e polui nossas relações, ultraja e revolta as nossas almas, espalha a desconfiança nos corações e nas fisionomias, põe a prevenção e o receio, quer que reinava dantes a lealdade e a franqueza. A diferença consiste apenas em que o nobre ex-ministro vê hoje dirigido contra si o gume do instrumento, cujo cabo s. ex. estava habituado a ver empunhado pelos seus.

A vil perversão, que o bravo almirante experimenta agora, há quatorze meses que a denunciamos solenemente perante o Supremo Tribunal Federal. Os elevados sentimentos, que hoje fervem no peito a s. ex. e a seus amigos, ter-nos-iam, se acordassem mais cedo, evitado o crime do estado de sítio, cujas origens residem nessa fonte impura e pestilenta. É dele que se despenhou sobre a terra a praga da suspeita politica, de cuja perversidade tivemos o mais triste corpo de delito nos absurdos e ridículos documentos apresentados ao Congresso em prova da conspiração de 10 de Abril.

Hoje não há, neste país, um homem de honra, capaz de negar a existência do flagelo, de que os nobres ex-ministros duvidavam até ontem, na cegueira dessa solidariedade que tanta já lhes pesa. Até ontem? Não dizemos bem. Já antes de despida a majestade Triunviral há razões para crer que ss. Exas. sentiam no encalço os passos furtivos dos agentes secretos do seu próprio governo.

     Não obstante a franqueza de nossa oposição, os nossos hábitos de publicidade, a nossa indissolúvel identificação com a república, a nossa repugnância absoluta e irredutível a todas as reações, a todas as conspirações, a todas insurreições contra a paz constitucional, nós por nossa vez não podemos escapar aos botes da calúnia premiada. Já o referimos na imprensa. A notícia, que tínhamos, assentava em fundamento seguro. Recorremos, sem esperança, à autoridade, que se encerrou na devida reserva, contestando o fato, a cujo respeito aliás até hoje não nos pode restar dúvida. E eis a petição, que a esse tempo, lhe endereçou o redator em chefe desta folha.

     Exm° Sr. Dr. Chefe de Polícia: O Senador Rui Barbosa, tendo ciência de um depoimento, tão ridículo quão torpe, dado contra si, nesta repartição, sábado 4 do corrente, por um oficioso, que o argui de andar em reuniões noturnas de conspiradores, precisa, a bem do seu direito, que V.Exa. lhe mande dar por certidão esse falso testemunho, ofensivo de sua honra individual e da sua dignidade como representante da nação, a fim de ser levado aos tribunais o caluniador. Espera do bom senso e inteireza de v. ex. o devido deferimento, convencido, como está, de que a polícia tem interesse maior do que o peticionário na punição destes cavalheiros de indústria, cujas especulações comprometeriam mais os créditos da autoridade, que os acobertasse contra a responsabilidade legal, do que a reputação do caluniado, muito superior, bem o sabe v. ex., à baixeza desta espécie de imputações, suficientes por si sós para caracterizar a moralidade dos seus autores, e recomenda-los à vigilância policial.

De uma situação como esta seria injustiça destacar, como se tem querido, um homem, uma autoridade subordinada, e acabrunha-la sob a sua responsabilidade. O fato é que vivemos aqui sob uma tríplice ditadura: a ditadura do Prefeito (agora esperemos em Deus que extinta para sempre), a ditadura da polícia e a ditadura do Chefe do Estado.

Esses três árbitros concêntricos substituíram o domínio da lei pelo domínio de uma vontade. Ora, o fabrico oficial de conspirações, a recompensa à delação, a organização das agencias provocadoras são elementos essenciais a essa espécie de governo. Enquanto o país continuar a ser regido pela violência intermitente dos golpes de estado e pela iminência habitual deles, o poder terá sempre na algibeira um esboço de conjuração para seu uso, e, pela própria natureza de sua posição, exercerá a intendência deste gênero de serviços. A espionagem é uma necessidade das usurpações, que, operando fora da lei, e sentindo-se incompatíveis com ela, vivem constantemente dominadas pelo temor da reação nacional.

Essa imoralidade, que o Brasil vira grassar pela última vez nos dias negros do primeiro reinado, que Portugal viu campear pela derradeira vez sob a usurpação miguelista, é, portanto, um sintoma, uma resultante das influencias extra constitucionais que caracterizam a atualidade, que uma dessas resultantes, um desses sintomas, que reagem, por sua vez, sobre o organismo degenerado, acelerando lhe a degeneração. A espécie de corrupção que ela desenvolve, que tem desenvolvido, é a extinção pública a hipocrisia, a inveja e o rancor; é a concorrência aberta entre os energúmenos de nascença e os energúmenos de interesse; é sistema de seguro mútuo para a ganância e a ferocidade, aliadas sob o engodo da impunidade oficial e da gratidão administrativa. A polícia, órgão da paz nos estados livres, previne e descobre os delitos; a espionagem, órgão do ódio nos estados oprimidos, fomenta e elabora os crimes. Montesquieu disse, no Espírito das Leis: “A espionagem seria talvez tolerável, se pudesse incumbir-se a homens honrados; mas a infâmia necessária das pessoas, nesse oficio, pode habituar-nos a ajuizar a infâmia das coisas.”

Pena é que se não trouxe à luz o rol, prometido por um dos nossos colegas, dessa confraria da lepra policial. Ficariam, como convém, assinalados à náusea pública os familiares da triste irmandade, muitos dos quais são apontados a dedo nas ruas, nas assembleias, nos círculos particulares, onde a aparição desses intrujões torpes gela a palavra nos lábios, estampando no olhar dos circunstantes a revolta, ou o desprezo.

Ainda assim, por extensa que fosse a lista, poucos, relativamente, seriam os descobertos; porque o luxo na propagação desse funcionalismo clandestino como os vícios obscenos é incalculável. Seus sórdidos parasitas disseminam-se por toda parte, recrutando instrumentos em todas as situações sociais, dos homens ás mulheres, das hetairas às matronas, dos nacionais aos estrangeiros, dos paisanos aos militares, dos janeanes aos barões, dos vagabundos aos doutores, dos malroupidos aos janotas, dos criados de servir aos empregados públicos, dos governistas aos oposicionistas. Pelo enxamear, os sevandijas revelam-se legião. É um segundo corpo de polícia, desfardado, fantasiado sob todos os disfarces e aviltado a todas as baixezas, para ser útil. Quem lhes quiser avaliar a multidão há de subir das centenas aos milhares.

Em quanto importa para o Tesouro, esse criminoso descaminho das verbas do orçamento? Quem poderia descerrar a cortina a esse quartel de Lázaros, mostrar ao país o custo dessa engorda ignóbil, contar-nos as moedas, com que se coça esta gafeira?
Rui Barbosa, “Obras Completas”, Vol. XX. 1983, Tomo II – “A Ditadura de 1893 – Jornal do Brasil”, ed. Ministério da Educação e Saúde, RJ, 1949

 

Aafpp-55 (3) - Copiantonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal e Infraestrutura da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Vice-Presidente da Associação Paulista de imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.

 

 


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