O RESGATE DO AMBIENTE DE REGULAÇÃO

O Ambiente de Regulação não comporta ideologias ultrapassadas

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Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro

O conceito de Regulação

Compreender o ambiente de regulação é fundamental, especialmente neste momento em que o país terá que se mobilizar para superar o desastre provocado por mais de uma década de governos empenhados em resgatar “o controle do Estado” sobre atividades consideradas essenciais.

É necessário, porém, que se promova, com urgência, o resgate conceitual embutido na profunda reforma do Estado brasileiro, ocorrida na primeira gestão do Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995.

A reforma do Estado permitiu a privatização em larga escala de áreas da economia nacional absolutamente engessadas pela burocracia e sucateadas pela má administração governamental. Para tanto introduziu uma tecnologia de gestão denominada “ ambiente de regulação”.

O ambiente de regulação é expressão da permeabilidade do Estado moderno aos instrumentos de participação social, resolução dedicada de conflitos socio-econômicos complexos. Essa complexidade advém da progressiva simbiose entre dois processos aparentemente díspares, mas que se complementam no contexto da globalização e da economia de mercado: o controle social sobre o uso dos recursos ambientais e econômicos pari passu com a privatização da gestão e apropriação dos mesmos recursos.

Essa conflituosidade, somada às crescentes demandas mundiais por autonomia, satisfação, inclusão e informação, geram uma categoria de interesses de natureza difusa. Esses interesses e direitos, razoavelmente complexos, demandam novos modelos de administração.

Interesses difusos e o Estado Regulador

Direitos e interesses difusos passaram a ser tutelados pelo Estado, de forma sistemática, a partir do último quarto do século XX. O fenômeno tornou-se expressivamente crescente neste primeiro quarto do século XXI.

Direitos e interesses difusos, formam o que chamamos de “terceira geração de direitos da era moderna”.

Direitos de terceira geração guardam um parâmetro econômico diverso. Não se confundem com os direitos individuais de primeira geração, que expressam liberdade de contratar, definem o direito de propriedade e protegem a livre iniciativa e livre vontade como elemento preponderante nas relações de mercado.Também se postam para além dos direitos coletivos, de segunda geração, relacionados aos contratos coletivos, à sindicalização, à garantia dos direitos sociais, à previdência e à preponderância da vontade da maioria nessas relações.

A tutela dos direitos e interesses difusos compreende, em primeiro lugar, o reconhecimento de que nem sempre a “vontade da maioria” significa prevalência desta sobre os interesses do Estado e destes sobre o Interesse Público.

Conselhos, Audiências Públicas e Agências compõem o ambiente de regulação

Conselhos, Audiências Públicas e Agências
compõem o ambiente de regulação

Aspecto relevante dessa nova ordem é a diluição dos papéis dos poderes executivo, legislativo e judiciário. De fato, já não são mais exercidos como tradicionalmente o eram no período de consolidação da democracia representativa.

Hoje os Poderes de Estado são permeáveis. Não agem regidos apenas pela posição programática dos mandatários, mas sim através de uma série de estruturas e mecanismos de participação incrustados no organismo administrativo.

Conselhos técnicos multidisciplinares, de cidadãos e organizações não governamentais, audiências públicas e consultas setoriais constituem mecanismos já inoculados nos poderes executivo, legislativo e judiciário. Mudanças na atividade econômica não raro são ocasionadas por resoluções com força de lei, emanadas a partir de deliberações de conselhos técnicos, quando não precedidas por determinação judicial face ao executivo.

Este fenômeno deve ser compreendido tendo-se em vista que meio ambiente, infraestrutura (energia, transporte e saneamento), saúde, segurança pública, educação, relação de consumo, patrimônio cultural, comunidades tradicionais e minorias, entre outros, são interesses indivisíveis e afetos a um número indeterminado de pessoas, independentemente de classe social ou mesmo nacionalidade.

Fato: ante a complexidade de fatores econômicos, natureza e extensão dos conflitos, necessidade de provisão, diversidade e magnitude de interesses, a capacidade de fomento do Governo, em especial nestas matérias de direito difuso, sofre sensível redução.

A figura do Estado Provedor, então há de ser substituída pela do Estado Regulador.

Agências, conselhos, audiências públicas... elementos componentes do ambiente de regulação

Agências, conselhos, audiências públicas… elementos componentes do ambiente de regulação

 

Política Pública da Regulação

O Estado Regulador , por óbvio, não assume a atividade que regula. No entanto mantém mecanismo de presença do interesse público sobre a atividade regulada.

Surgem as chamadas “ agências”, organismos marcados pelo dinamismo decisório, independência administrativa, excelência técnica e funcionalidade dedicada.

 

As agências passam a prestar suporte e regular a atividades econômicas essenciais ou de interesse estratégico.

Antes gerenciadas diretamente pela burocracia estatal, essas atividades econômicas complexas passam a ser reguladas, permitindo-se-lhes compartilhar gestão, quando não serem apropriadas integralmente pela iniciativa privada, ganhando aportes financeiros, investimentos, capacitação e dinamicidade, sem perder, contudo seu status de submissão ao interesse público.

O ambiente de regulação é de ordem pública. Deve, portanto, estar vinculado a uma estrutura constitucional, orientado por leis emanadas pelos parlamentos.

A legislação correspondente, no entanto, sofre mudanças estruturais profundas.

A capacidade de intervenção da sociedade civil e dos agentes econômicos nas atividades de regulação, bem como a intensa dinâmica tecnológica e social nos dias atuais, não autorizam mais a edição por parlamentos de “ Leis Codificadas” ou marcos legais passíveis de engessar processos econômicos e atividades técnicas. Tais procedimentos correrão risco de rapidamente tornarem-se obsoletos.

Há, portanto, uma técnica legislativa de terceira geração. Ela se traduz na formulação de Políticas Públicas – entendidas estas não como mera figura de linguagem, mas sim como ações sistematizadas e estruturantes do Estado.

Políticas Públicas encontram-se vinculadas à Constituição, adstritas à Lei e, portanto, constituem matéria de Direito Púbico. Políticas Públicas distinguem-se das leis codificadas por não pretenderem abranger toda a matéria objeto da tutela legal. Com isso ela não irá engessar os fluxos econômicos ou burocratizar a ação governamental.

A verdadeira Política Pública possui uma estrutura clara. Obrigatóriamente deve apontar os princípios que a norteiam, indicar os objetivos de sua implantação, estatuir e definir claramente os conceitos legais que a contextualizam, especificar sistemicamente os instrumentos para sua implementação e instituir normas gerais de responsabilização e sancionamento.

A regulamentação da Política Pública detalhará os mecanismos de resolução de conflitos, definirá o funcionamento da Agência Reguladora (ou outro instrumento similar de regulação) e atenderá às demandas de participação da sociedade civil e de oxigenação por meio da abordagem interdisciplinar, traduzidas na existência de Conselhos, de nível decisório, incrustrados no sistema.

A participação da sociedade civil é condição de validade para qualquer Política Pública.

Essa nova página da história é sentida no Brasil e no resto do mundo. É adotada por organismos internacionais de fomento e comércio. Não pode ser ignorada ou descartada isoladamente, por qualquer governo responsável, em um sistema democrático.

Agências não são apenas uma salada de siglas - constituem expressão do Estado Regulador

Agências não são apenas uma salada de siglas – constituem expressão do Estado Regulador

 

Ideologias e involução regulatória

A Reforma do Estado e o processo de privatização ocorrido a partir de 1995, cristalizou o ambiente de regulação em nosso país.

A regulação marca hoje a telefonia, os recursos hídricos, a energia, os combustíveis e os transportes. A regulação caracteriza o ambiente que vem sendo implantado na defesa da livre concorrência, na tutela dos direitos dos menores e adolescentes e nas relações de consumo.

Foi adotada também na gestão do saneamento básico e na gestão ambiental – esta última ordenada por Lei de Política Nacional vigente há trinta anos, portanto precursora – ainda pendente da devida modernização regulatória.

A conflituosidade intrínseca, característica dos interesses difusos, contudo, não foi e não é compreendida ideologicamente pelas gestões ditas de esquerda que se ocuparam da formulação de políticas públicas, nos governos posteriores à da reforma do Estado brasileiro.

De fato, ocorreu grave e previsível involução.

O presente artigo tem por base um anteriormente escrito para o Boletim Ambiente Legal, no início de 2003. Naquela oportunidade já alertávamos para o risco de retrocesso regulatório, que, infelizmente, veio a ocorrer.

O alerta era válido ontem e, é hoje quase uma sentença:

“O ambiente de regulação exige que o administrador público esteja despido de blindagens ideológicas ultrapassadas, etiquetado como “liberal” ou “socialista”, ou vítima de qualquer outra visão calcada no pensamento excessivamente racional e kantiano (que ruiu com o Muro de Berlim, no final do Séc. XX). Resta, portanto, saber se os novos governantes do Brasil do Séc. XXI saberão dar curso a esse processo que é histórico e mundial.
É isso que difere os Estadistas dos Gerentes, os Democratas dos Burocratas!”

De fato, os governos que deveriam produzir Estadistas, involuíram em uma década para a mesmice dos gerentes.

“Políticas Públicas” indignas desse nome, foram baixadas por resoluções, portarias e decretos…

Políticas Públicas editadas legalmente, foram sancionadas desprovidas de instrumentos, sistemas e agências reguladoras.

Involuções bárbaras ocorreram no ambiente de regulação e levaram ao sucateamento de agências reguladoras importantes, a agência de água, as de energia, petróleo, aviação civil, telefonia, saúde e meio ambiente.

O corporativismo e a burocracia se apropriaram de órgãos importantes, como os organismos de controle administrativo do Poder Judiciário e da Receita Federal.

A corrupção e a política de favores assumiu proporções correspondentes à falta de transparência, que cresceu na razão direta do sucateamento das agências e conselhos.

Exemplos de involução podem ser apresentados na legislação portuária, que afastou investimentos e vem causando imensa confusão regulatória, desemprego, paralisia na expansão e funcionamentos de terminais privados e cessação de qualquer iniciativa modernizadora.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos, é outro triste exemplo. Nasceu desprovida de agências reguladoras e entidades gestoras dos fluxos econômicos de resíduos. Com isso a logística reversa ficou reduzida a feitorias de catação postos de entrega voluntária “para inglês ver”, ocorreu cartelização em vários estados, prefeituras ficaram desprovidas de condição de obedecer à lei e a valoração da cadeia de gestão dos resíduos virou miragem.

O país está sem desenvolver economias em vários setores estruturantes, simplesmente porque não há regulação e, sim, uma crescente e paquidérmica burocracia.

Hora do resgate

Hora, portanto, de resgatar o ambiente de regulação, estimular a economia e abandonar de vez esse entulho autoritário e burocrático representado pela postura jurássica de quem prefere argumentar contra os fatos e produzir escombros.

Fonte:

http://www.theeagleview.com.br/2015/08/o-resgate-do-ambiente-de-regulacao.html?q=ambiente+de+regula%C3%A7%C3%A3o

http://www.ambientelegal.com.br/online/boletim-08/

 

Antonio Feafpprnando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.

 

 


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