QUANDO A FOGUEIRA DAS VAIDADES QUEIMA LIXO

Até onde é possível permitir que o direito seja instrumentalizado pela canalhice?

 

"Um advogado que evidentemente está repleto da mais íntima convicção que seu cliente o pagará bem." (Daumier - "Le Gens de Justice" - 1845)

“Um advogado que evidentemente está repleto da mais íntima convicção… que seu cliente lhe pagará bem.” (Daumier – “Le Gens de Justice” – 1845)

 Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro

 

No lodaçal da política brasileira, a noção do que seja ética já sucumbiu.

A morte da ética atinge a primeira e mais nobre instituição do direito, que deveria primar pela correção na defesa das causas e das pessoas em busca de justiça: a advocacia.

Este artigo visa abordar a dura deformação sofrida pela nobre profissão que constitui a administração da justiça, cujos efeitos afetam a estabilidade e vigência do próprio Estado de Direito no Brasil.

Chicaneiros e manipuladores

Há quem se julgue acima da lei, mesmo sendo dela um operador. Um fato que, no entanto, está se tornando regra.

Sempre houveram, desde os idos do Império Romano, profissionais do direito detentores de posturas canalhas e sarcásticas. Arrogantes responsáveis por estimular profunda distorção de valores na justiça e na advocacia. Essa postura, infelizmente, ainda vigora por aí e alhures.

No Brasil, entretanto, a falha moral parece hoje constituir um requisito. A postura canalha decorre da instrumentalização nociva de princípios caros ao Direito, como se a função da norma jurídica fosse a de prestar-se a interpretações que protejam poderosos de plantão ou projetar ativistas que desagregam o tecido social.

Por óbvio que isso ocorre na exata proporção dos idiotas e militantes de causas idem, que passam a ocupar o espaço antes destinado à cultura e à moral ilibada.

É fato que a canalhice não subsiste se não ocorrer simbioticamente. Daí a correspondência clara entre condutas que fariam até a mulher de Cesar corar.

Se é cediço que não basta ser honesto (é preciso parecer ser), há quem ache inteligente não apenas não ser… como parecer que não é mesmo!

A postura canalha integra o chamado “custo Brasil” com destaque. Ela não apenas envolve corrupção – abrange também a insensibilidade social. Contamina profundamente as carreiras jurídicas brasileiras, a começar da jusburocracia – ciosa dos salários altos que recebe, somados a benefícios nababescos, tudo temperado com perversa sensação de impunidade.

É parte do fenômeno que denomino “pirâmide da arrogância” – cuja base exclui quem pensa diferente e o vértice só admite ouvir quem reproduz o pensamento que já está ali sedimentado. O resultado dessa pirâmide é a sucessão piramidal de desastres, que nos transforma em párias nos processos globais que deveríamos protagonizar.

A síndrome da arrogância afeta razoável parcela da Administração da Justiça. Ela decorre da arbitrariedade recalcitrante e da sinergia da falta de méritos – que grassa os quadros que ali despontam. Ela também decorre da desonestidade (ainda que praticada por ínfima parcela), e da morosidade incrementada pelo comodismo burocrático. Ocorre também, em grau preocupante, pelo ativismo comprometedor. Tudo isso contribui para fermentar o caldo de cultura da canalhice no direito nacional e elevar a chicana à categoria de patrimônio da jurisprudência.

Chicana é expediente utilizado pela parte no processo, visando criar dificuldades com base em argumentos maliciosos e irrelevantes, abuso de recursos e uso de formalidades redundantes e dispensáveis.

Deontologicamente, há certa tolerância no mundo jurídico para com a chicana, quando resulta de ato desesperado ou visa “ganhar tempo” na busca de elementos que realmente importem ao deslinde dos fatos. No entanto, a chicana torna-se molecagem intolerável quando desmoraliza as instituições, permite o uso constante da má-fé, garante a manobra capciosa e é utilizada como trapaça ou tramoia para obstar o efetivo cumprimento da lei, obstruindo a justiça.

Essa molecagem contamina – e parece estar sendo inoculada por parcela já contaminada, na cultura judiciária nacional. Não raro a mistura de arrogância, chicana e arbitrariedade engajada, termina por ocasionar estragos profundos no equilíbrio de poderes da república, esfarelando a credibilidade da Justiça.

Bravos e poucos magistrados, é certo, estão empenhados em romper com o círculo vicioso da incompetência, do populismo e da corrupção. Não por outro motivo, têm sido ovacionados pela população – e odiados pelos canalhas.

Juristas que honram a história da advocacia, no entanto, também se mobilizam. Juristas de escol, que honram a história, subscrevem peças importantes para o deslinde de dilemas nacionais – como foi o caso do impeachment da presidente petista Dilma Rousseff. Por óbvio, estes também recebem o reconhecimento popular… e suportam estoicamente o achincalhe intentado pela matilha de defensores dos malfeitos empresariais e governamentais.

Há, no entanto, um contraste entre o que sente a opinião pública, expressa a mídia e opinam a respeito os círculos canalhas dos endinheirados sem origem, nas rodinhas de poder. É neste último ambiente que hoje se encontra grande parcela de juristas articulados com o poder político e econômico nacional.

Esse contraste revela uma profunda distorção de valores e essa distorção revela o escárnio, que transcende a militância, destrói currículos e mancha biografias.

A má fé é teleológica, por isso mesmo contraria a deontologia profissional e distorce todos os princípios – jurídicos e morais.

Com o advento da moderna comunicação e das redes sociais, todo esse conflito é exposto na televisão, nas rádios, nos jornais e nas mídias digitais. O fato transmite um péssimo sinal para a sociedade e sinaliza algo muito ruim para toda uma nova geração de profissionais. Passa a noção que a razão do sucesso não está na advocacia digna ou no exercício honrado de um cargo público – Ela está na canalhice.

É desta forma que a canalha informa à opinião pública, que o cinismo é rentável e a podridão é socialmente aceitável.

Os chicaneiros engajados fazem uso deliberado da venda que cega a justiça. Com isso, costumam dar à cegueira um sentido sórdido… para coonestar com peripécias doutrinárias mais afetas à mídia intestina que ao debate sério da causa do Estado Democrático de Direito.

A lama por eles produzida está gravada nos eventos de repúdio ao impeachment e à prisão de políticos. A distorção moral se observa nos atos de repúdio à Justiça, nas greves e assembleias estudantis, promovidas para promover o ódio e estimular a desobediência civil e o desrespeito à Justiça. Também encontra-se embutida nos pronunciamentos ameaçadores, plenos de certeza, ditos sob o argumento da autoridade, de quem é pego com a boca na botija ou… muito próximo de fazê-lo.

A máquina de insultos substitui a cordialidade devida no meio e, assim, manifestações desairosas a colegas que exercem o direito constitucional e moral de se indignar, destroem o contraditório e estimulam a canalhice.

A propósito, não por acaso os desenhos de Daumier ilustram esse artigo. As gravuras nos remetem à farsa que termina ditando a triste realidade.

Há misérias engravatadas, togadas, ricas, eruditas e deslumbradas… que nem por isso, deixam de ser misérias, que constituem outras misérias.

 

"Pois é, o Ministério Público disse coisas muito desagradáveis a seu respeito.. Seria o caso de deixar cair ao menos uma lágrima do olho. Isso faria bem..." (Daumier - 1845 - "Le Gens de Justice")

“Pois é, o Ministério Público disse coisas muito desagradáveis a seu respeito.. Seria o caso de deixar cair ao menos uma lágrima do olho. Isso faria bem…” (Daumier – 1845 – “Le Gens de Justice”)

 

O lodo chega à advocacia

A confusão entre engajamento ideológico e interesse econômico tomou conta de toda a máquina burocrática estatal. Derrete e amolece as colunas mestras do ministério público, destrói e corrói a magistratura, degrada e a advocacia pública e corrompe as instituições de controle de contas, fiscalização e atividades policiais.

É certo que o processo de degradação moral no meio jurídico sofreu enorme incremento nos governos de Lula e Dilma. Esse fenômeno está na origem dos escândalos da corrupção petista e também na exacerbada defesa dos envolvidos por militantes partidários – partidarizando as instituições da jusburocracia.

Se o equívoco no exercício de papéis, embora não justificável, pode ser compreendido entre leigos, em relação aos profissionais do direito é indesculpável.

No campo privado, até mesmo em atitude reflexa à degradação da jusburocracia, o processo de podridão das árvores pelo topo também acontece. Assim ocorreu a lamentável imersão de bons colegas e bancas de renome, no lodaçal das boas intenções em prol dos canalhas… noticiada todos estes anos.

Mas ocorreram ações precursoras em nossa recente história republicana. Afinal, quem não se lembra das camarilhas do martelinho no processo das “privatarias tucanas”, nos anos FHC? Nada parecido com a explicitude e a falta de verniz sócio-cultural observada no lulopetismo, mas plena de perversão na formação de toda uma geração de canalhas engravatados (ou de tailleur), com fala mansa e ar professoral.

De uma forma ou outra, os “profissionais-raiz”, com talento, com boa prática, com história, cultura, experiência e fala firme, foram aos poucos sendo substituídos pelos “profissionais-nuttela”, apadrinhados, pós-graduados na persistente bajulação acadêmica, com currículos pendurados em empregos públicos sem mérito, eruditos sem cultura, personagens sem história, e detentores da mais cínica fala mansa…

A oralidade pública – razão de ser da boa advocacia e da publicidade da justiça, deu lugar ao mimimi por escrito – prolixo, cheio de citações vazias, respondido por extensas laudas de decisões sem nexo – geralmente “terceirizadas” e lidas sem expressão – razão de ser da péssima advocacia e da justiça desfeita nos arranjos de gabinetes. Basta medir a canalhice pelo número de laudas que hoje são consumidas pelas mais banais decisões…

Sintomatologia do cancro profissional

Os sintomas desse processo são notórios.

Primeiro, surgiram as notícias sobre escritórios que se tornaram a meca das atividades de governo, geridas pela “companheirada no poder”. Demandas canalizadas para a “firma do ano”, escolhida pela “eficácia” na resolução das questões, independente do assunto.

A especialização tornou-se conveniente, bastando terceirizar e contratar.

O fenômeno abrangeu misturas duvidosas de especialidades com a mesma clientela. Tornou-se, assim, banal a assunção da defesa de políticos junto à justiça eleitoral e, depois, o patrocínio de causas dos mesmos clientes sob o manto da defesa da instituição que passaram a dirigir, misturando casos de crime de corrupção ou improbidade administrativa da pessoa natural com o parecerismo ou assessoria nas causas envolvendo o ente público.

O relacionamento restrito ao campo da solidariedade entre companheiros transcendeu para a conexão com polpudos contratos de prestação de serviços à administração pública, nas quais os ditos clientes estavam inseridos. Causas difíceis de explicar, licitações e contratos misturando interesses próprios com o dos órgãos que os clientes dirigiam… tudo para cruzar “oportunidades” com dívidas de honorários devidos por causas outras… em outras causas.

O resultado disso terminou estampado diariamente nos jornais: conflitos de interesses, convergências de divergências éticas, denúncias de honorários estratosféricos – e suspeitas de repasses idem, passaram a ser noticiados com frequência.

Depois dessa onda, veio outra mais vergonhosa: a da “porta giratória” – da indicação de “companheiros” (ou simpatizantes da “causa”), para os chamados quintos constitucionais dos tribunais dos estados e regionais federais. Indicações para os tribunais superiores passaram a ser uma espécie de “premio por serviços prestados” ou forma quase explícita de “aparelhar” a instituição e indiretamente reforçar a “blindagem” de líderes prestes a sofrer julgamento pelo órgão correspondente.

A porta giratória se estendeu para outros setores, como os conselhos de estatais, tribunais de contas, órgãos colegiados de controle externo, agências reguladoras, bancos públicos, fundos de pensão e organismos multilaterais.

A degradação da imagem dos organismos, a desmoralização das funções e a perda de credibilidade institucional tornou-se regra. O que seria ponto favorável no currículo profissional, estigmatizou jovens promessas.

Bons quadros nomeados para cargos públicos, foram precocemente enredados em escândalos e ligações perigosas. Outras “promessas”, contudo, se aprofundaram na canalhice precoce à qual já estavam vocacionadas desde os bancos escolares.

Como se já não bastasse, surgiram ainda noticiários sobre contratação de escritórios ligados a este ou aquele magistrado, vinculado por parentesco a um ou outro gestor público. Contratos passaram a ser firmados com estatais, conglomerados apadrinhados (sustentados por bancos igualmente favorecidos) e empreiteiras. Grupos econômicos que proliferaram coincidentemente no mesmo período marcado pelos escândalos de corrupção que afundaram a “companheirada” no mar de lama.

Quem deveria patrocinar defesas, inquirir e julgar nos processos de investigação, passou a ser também investigado – geralmente pela parcela do judiciário que, por sorte do azar (ou azar da sorte), não estava comprometida com o esquema.

A mídia passou a abordar, diuturnamente, amigos, filhos, parentes e contraparentes de cidadãos postados no poder, com título de “ministro” ou outro similar em cargo público. Parentes e amigos apareceram intermediando causas, interesses, lobbies, em franca orgia de promiscuidades relacionais – escracho à ética pública financiado por estatais, bancos, frigoríficos, lavanderias ou por empreiteiras de obras (cujo sentido “obrar” transcendeu aquele da construção civil).

Há um marco importante para se compreender a razão do afloramento dessa podridão toda: as manifestações de junho de 2013.

Após o grande susto, ocorrido com a massa de cidadãos de bem que tomaram espontaneamente as ruas, os canalhas abriram a guarda para não serem devorados pela população.

Graças à pressão popular, sobreveio a aprovação da Lei de Repressão ao crime organizado – em agosto de 2013, que permitiu ao judiciário independente – a parcela de homens e mulheres que ainda acreditam fazer algo pelo império da lei e da ordem, projetar luz sobre os malfeitos.

“Companheiros”, amigos dos amigos, laranjas e prepostos, começaram a ser encarcerados ás pencas (sem apelação, ou melhor, com várias…).

Sobreveio então a derradeira onda do lodaçal, envolvendo padarias jurídicas de todo tamanho – firmas ranqueadas, encarregadas de passar o verniz da banca de grife sobre ligações perigosas com resultados alarmantes.

Ironicamente, a luta contra a corrupção gerou um verdadeiro mercado de lavanderias jurídicas, lotadas por aquecedores de moeda corrente, com título acadêmico.

“Talentos” passaram a desfilar na mídia e ostentar riqueza da noite para o dia, ao tempo em que corporações multinacionais, grandes estatais, projetos culturais, fundos de pensão, fundos de investimentos e bancos eram impactados por escândalos e reputações eram destroçadas no moedor de carne humana das operações da Polícia Federal.

Transpareceu o fio da navalha que cortava as solas de colegas profissionais que o trilhavam – divididos entre o ônus da prestação de serviço advocatício e o bônus da lavagem de propinas. Transbordou assim o lodo jusburocrático, sugerindo envolvimento de personagens públicas antes insuspeitas.

Ante o risco de poderosos desabarem, mobilizações de jurisconsultos não tardaram a ocorrer, com manifestos e manifestações de toda ordem: de advogados contra juízes e promotores, de juízes e promotores contra advogados, de advogados contra advogados, “militontos” contra outros tontos e vice-e-versa.

Um espetáculo triste de misérias morais mútua e reciprocamente expostas.

Roupas sujas lavadas a jato, não se limpam com manifestos impressos em papel ou publicados em redes sociais. Esta a razão porque profissionais irromperam na sala da Justiça, com ternos bem cortados, sob holofotes, marchando sobre um tapete vermelho de indignação, no mesmo ritmo em que a ética sumia pela janela…

“Nata” ou “bravata” advocatícia?

Ficou registrado na história a constrangedora “novidade”, anunciada com arrogância peculiar por dirigentes petistas, que “dinheiro não faltará” para a contratação de advogados de peso – “a nata da advocacia brasileira” – para formar uma “equipe de altíssimo nível e respeitabilíssimo curriculum”, visando cuidar da defesa do ex-presidente Lula.

A ideia, segundo anotou a colunista Mônica Bergamo da Folha de São Paulo, seria “formar um grupo sênior, com profissionais acostumados a fazer o enfrentamento midiático e político de casos de grande repercussão, além da parte jurídica”.

Quando li a nota, pensei com meus botões: seria isso uma “nata” ou uma bravata?

Chamou atenção a forma absolutamente dinheirista do anúncio (a questão monetária saltava a cada linha da matéria).

Seria isso algo… ético?

Pergunto se, diante de tamanha promiscuidade, subscrever manifestos e sair por aí arrogando a autoridade dos que se dão enorme importância, pode ser considerado algo moralmente aceitável.

A absoluta necessidade midiática de demonstrar que o dinheiro (às pencas), move a “indignação”, é algo que moralmente se louve?

Por tudo que se viu, se vê, ouve e lê, o milk-shake de relações espúrias entre profissionais, tribunais, estatais, empreiteiras, institutos, partidos, bancas de serviços, interesses políticos, financeiros e de favorecimentos, é mais indigesto que qualquer cidadão de bem poderia suportar engolir sem vomitar.

Digo isso com todas as venias devidas.

Honoré Daumier: Dernier conseil des ex-ministres

Honoré Daumier: O derradeiro conselho de ex-ministros sai pela janela, quando a república entra pela porta…

 

O negócio rentável da deduragem premiada

Em virtude do encurralamento das corporações envolvidas nos casos de corrupção investigados, a deduragem atingiu patamares de “estratégia corporativa”.

Explodiu, assim, uma nova onda desconcertante do compliance de formulário – uma verdadeira ação empresarial que, embora iniciada com bons profissionais, já começa a atrair engravatados nutella, com fala mansa e absoluto foco no resultado vantajoso do manejo de delações, leniências e construções defensivas. Nadam todos em águas pacíficas, embora ameaçadoramente profundas.

Os “tubarões” persecutores se perderam na confusão entre colaboração e acordo de leniência – o que permite a contaminação dos procedimentos criminais pelas fórmulas de sobrevivência corporativa em tempos de crise.

Assim, empresas que deveriam sumir do mapa – tamanho o rombo perpetrado na moralidade pública, ganharam incrível sobrevida organizando estratégias de delação em massa de seus diretores e empregados graduados. A moda passou a ser confessar de forma canalha a canalhice praticada, para poder permanecer canalha.

Todos vão ao confessionário em busca de indulgências. Delações se processam às pencas, por baciada, seguindo manuais de “compliance” e distribuição cuidadosa de meias verdades, de maneira que todos se “beneficiem” do mal feito delatado e, assim, rendam benefícios à empresa delinquente. Verdadeiros “cases” empresariais, ao invés de casos criminais…

A “Grampolândia” e a “República dos Delatores” formam o novo risco de contumélia institucionalizada e a deduragem se transforma em plano de aposentadoria para corruptos delatores bem instruídos.

Com certeza, isso não era o objetivo da Lei, não é o objetivo da força tarefa do Ministério Público e Polícia Federal, da Justiça Federal e do STF (acredita-se que possuam estatura bem mais elevada que isso). Também não é algo que denigra o trabalho bem feito de uma defesa profissional eficaz.

Porém… o que se nota é o esvaziamento do trabalho do criminalista bravo e lutador, aos poucos substituído por trainees, assistentes e sócios de grandes padarias jurídicas – todos prontos a produzir documentos como se estivesse harmonizando diligências em uma operação de fusão ou aquisição de grandes empresas.

E, talvez, o processo criminal esteja mesmo virando isso mesmo.,,

Enquanto isso, processam o downsize do Estado Democrático de Direito e do Regime Republicano.

É preciso se indignar para resgatar a ética!

Em respeito à profissão que amo, aos colegas que lutam e trabalham, dia e noite, para sustentar suas famílias com dignidade, cabe perguntar:

1- Será que a miséria humana, a mesquinhez, a falta de princípios, a estreiteza ideológica, a falta de caráter e dignidade, chegou a tal nível baixeza que, ao fim e ao cabo, sobrou apenas… dinheiro?

2- Em meio a toda essa lama, na qual chafurda a classe política brasileira, sustentada com o dinheiro do sofrido povo brasileiro – receber quantias de procedência tão ruim não gera um dilema moral?

3- Há quem possa afirmar-se bem sucedido, quando o alegado “sucesso” ocorre às custas da saúde, da dignidade, da educação, da segurança e do futuro da população mais pobre? A carga de contribuição fiscal indireta – inversamente proporcional à miséria em que vive a população espoliada pela corrupção, não afeta a consciência de quem fatura com o conflito?

4- É ético fechar os olhos à corrupção praticada pelo contratante, quando se está ciente que o dinheiro dos honorários pode ter sido auferido com a deseconomia, o desemprego, o sucateamento de empresas e bens públicos, e a morte de pessoas deixadas à míngua nas filas dos postos de saúde, nas salas de espera da previdência, humilhada nos balcões de atendimento de serviços públicos sucateados?

5- Aceitar receber quantias “nababescas” para servir de bonequinho de enfeite engravatado, ornando o bolo de lixo da corrupção, assado e sustentado com dinheiro roubado da nação brasileira… seria algo digno de se alardear?

6- DATA VENIA, no caso da contratação “a peso de ouro” de um “dream team”, é lúcido e lícito permitir que o sagrado ofício de garantir um direito de defesa, seja ostensivamente monetizado?

Não questiono a figura e a importância histórica e conceitual, da advocacia. Muito menos questiono a dignidade da profissão de advogado.

Como advogado sei bem da dureza que é assumir casos que causam antipatia popular, e a necessidade de ser bem remunerado por isso.

Porém, a forma como tudo é divulgado, postado e transmitido, mídia afora, incluso por colegas, por magistrados e procuradores, deveria ser motivo de preocupação, não apenas minha, mas de todos os organismos de representação e tutela da advocacia, do judiciário e do ministério público.

Muito profissional envolvido, talvez por se encontrar absolutamente deslumbrado com a oportunidade do próprio protagonismo, não se apercebe que, de tanto advogar para canalhas, termina por patrocinar a canalhice.

Há uma ética a ser seguida

A preocupação deste artigo não é vã. Ela encontra respaldo nas regras de conduta da advocacia.

Reza o Código de Ética da Advocacia Brasileira, art. 2o., VII, que o advogado deverá abster-se de :

“a) utilizar de influência indevida, em seu benefício ou do cliente;
b) patrocinar interesses ligados a outras atividades estranhas à advocacia, em que também atue;
c) vincular o seu nome a empreendimentos de cunho manifestamente duvidoso;
d) emprestar concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana.”

Assim, antes dos desagravos de praxe, das acusações sobre o antes, o durante e o depois, dos debates inúteis sobre as origens de autoria dos favorecimentos; antes da polarização entre tucanos e petistas, peemedebistas, pepistas e pecedobistas, entre salvacionistas arbitrários e nostálgicos da ditadura que nunca experimentaram; antes das defesas pomposas de escritórios de grife, juristas, com juros, ministros ministrados e seus agregados, deveria o mundo jurídico, sem exceção, tomar vergonha na cara. Deveriam todos simplesmente fazer silêncio, reduzirem-se aos autos dos respectivos processos.

É certo, como vaticina Esopo, que todo tirano usa de um pretexto justo para exercer sua tirania.

Nesse sentido, tiranetes pululam nos escaninhos e mesas emboloradas do serviço público – como miniaturas do “Inspetor Javert” de Victor Hugo, protagonizando arbitrariedades a título de promover a Justiça. No entanto, o combate às tiranias também não pode servir de pretexto à manutenção da injustiça.

Nesse sentido, é lamentável testemunhar (e moralmente ter que desmerecer), o esforço de articulação da companheirada engravatada, de juristas engajados, na defesa de uma esquerda que tem se comportado de maneira esquerda. Pior ainda quando a defesa se estende aos braços direitos dessa mesma esquerda…

Paira no ar, todavia, a certeza que este padrão não escolhe lado. basta tão somente o deslumbre com o poder, para se repetir no plantão deste, independente da bandeira do plantonista.

Os arautos da canalhice bem remunerada deveriam calar a boca, para não expelir mais lixo sobre o já poluído lamaçal em que se encontram atoladas a Justiça e a Política brasileiras.

Não merece qualquer respeito, temor e muito menos admiração o que se testemunha hoje, nos debates pretensamente “jurídicos”, em torno das condutas de políticos corruptos, beneficiários da corrupção e suas mazelas junto à justiça criminal.

Pelo contrário, há de se registrar com firmeza o profundo desprezo a todo esse opróbrio, coberto de cinismos e posturas igualmente desprezíveis.

O destino é implacável. Queimará a todos na fogueira de suas próprias vaidades, tal qual o incinerador gera seu calor na autocombustão do lixo nele depositado.

Tout d’abord l’avocat! Le courage, pour un avocat, c’est l’essentiel, ce sans quoi le reste ne compte pas * – ensinava Robert Badinter – o grande jurista e político socialista que lutou para abolir a pena capital na França.

Permanecerá, ao fim e ao cabo, o verdadeiro advogado. O profissional corajoso, heroico e batalhador.

Assim como nos escândalos anteriores, quanto aos canalhas, nada deles permanecerá gravado na história, apenas a cinza, o opróbrio e o esquecimento. Restará o enorme dano moral praticado.

Nota:
*Primeiro de tudo, o advogado! A coragem, no advogado, é essencial, caso contrário, o resto não importa…


afppedro

 *Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.

 

Fonte: The Eagle View
Publicação Dazibao,09/09/2020 e 2016
Edição: Ana A. Alencar

 

 

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