Questões sobre áreas e vegetação de preservação permanente

Chapada Diamantina, Bahia

Chapada Diamantina, Bahia

 

Por Ricardo Cintra Torres de Carvalho*

Surge com frequência a dúvida sobre a proteção das “áreas” ou da “vegetação” de preservação permanente e qual seria a vegetação protegida. Faço aqui um breve escorço histórico com algumas observações, sem pretender solucionar as dúvidas que surgem no caso concreto.

Abstraído o período anterior, o DF 23.793/34, de 23/1/1934, que aprovou o Código Florestal, dispõe no artigo 1º que “as florestas existentes no território nacional, consideradas em conjunto, constituem bens de interesse comum a todos os habitantes do país, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que as leis em geral, e especialmente este código, estabelecem”; no artigo 2º, que os dispositivos do código aplicam-se “assim às florestas como às demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem”. Os artigos 3º a 14 classificam as florestas (protetoras, remanescentes, modelo, de rendimento) e seu regime legal; e como florestas protetoras se enquadram a vegetação das demais áreas descritas na lei posterior (áreas de preservação permanente) e a reserva legal, consideradas “de conservação perene e inalienável” pelo artigo 8º. O artigo 23 dispõe que “nenhum proprietário de terras cobertas de matas poderá abater mais de três quartas partes da vegetação existente, salvo o disposto nos art. 24, 31 e 52″, abate esse precedido de licença da autoridade competente (parágrafo 2º).

O texto indica que a lei se referia às matas e à vegetação existente, não às áreas (quase não indicadas na lei) onde se situassem; não delineia a consequência da derrubada em excesso nem o reflexo do artigo 23 na divisão da propriedade em que alguns condôminos fiquem com áreas sem vegetação e outros com a mata conservada. Não previa a recomposição da vegetação nem a formação da mata onde nenhuma existia; e tal lacuna, somada à falta de fiscalização e a uma visão econômica da propriedade, levaram ao extermínio de quase totalidade da cobertura vegetal, conforme a terra ia sendo ocupada.

A LF 4.771/65, de 15/9/1965, reproduzindo a lei anterior, dispõe no artigo 1º que “as florestas existentes no território nacional e demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta lei estabelecem”; e inovou a lei anterior ao vincular a vegetação a um determinado acidente geográfico. O artigo 16, redação original, permite a exploração das florestas de domínio privado, com as seguintes restrições: (a) nas regiões Leste Meridional, Sul e Centro-Oeste, esta na parte sul, a derrubada de florestas nativas, primitivas ou regeneradas, respeitará o limite mínimo de 20% da área de cada propriedade com cobertura arbórea localizada, a critério da autoridade; (b) nas regiões citadas, nas áreas já desbravadas e previamente delimitadas pela autoridade, fica proibida a derrubada de florestas primitivas para ocupação do solo com culturas e pastagens, permitida apenas a extração de árvores para produção de madeira. Nas áreas ainda incultas, sujeitas a formas de desbravamento, as derrubadas de florestas primitivas para instalação de novas propriedades agrícolas só serão toleradas até o máximo de 30% da área da propriedade. Conforme seu parágrafo 1º, nessas propriedades rurais (alínea “a”) com área entre 20 e 50 hectares computar-se-ão, para efeito da fixação do limite percentual, além da cobertura florestal de qualquer natureza, os maciços de porte arbóreo, sejam frutícolas, ornamentais ou industriais. A LF 7.803/89, de 18/7/1989, introduziu no artigo 16 o parágrafo 2º, prevendo a averbação da reserva legal na matrícula do imóvel e vedando a alteração de sua destinação em caso de transmissão ou desmembramento, e o parágrafo 3º, que manda aplicar às áreas de cerrado a reserva legal de 20%, para todos os efeitos legais (trata-se de um acréscimo explicativo, não constitutivo de uma nova área de preservação).

Não era uma situação clara. O artigo 2º da LF 4.771/65 considerava de preservação permanente “as florestas e demais formas de vegetação natural situadas” nos locais descritos na lei; era uma proteção da vegetação vinculada a um local. A lei protegia a vegetação arbórea existente e não determinava, ao menos com suficiente clareza (o que foi depois corrigido), que o proprietário restaurasse a mata inexistente; tanto que o artigo 18 atribui tal responsabilidade ao poder público federal, “onde seja necessário o florestamento ou o reflorestamento” (isto é, poderia haver áreas em que o reflorestamento não fosse necessário), mediante indenização “se tal área estiver sendo utilizada com culturas”.

Tal situação foi mantida no artigo 18 da LF 6.938/81, que transforma em reservas ou estações ecológicas “as florestas e as demais formas de vegetação natural de preservação permanente, relacionadas no art. 2º da LF nº 4.771 de 15-9-1965″, e no artigo 3º “b” da Resolução Conama 4/85, de 18/9/1985, novamente remetendo à vegetação e não à área em si (no entanto, o DF 89.336/84, de 31/1/1984, faz menção às “áreas de preservação permanente mencionadas no art. 18 da LF nº 6.938/81″).

O Código Florestal foi extensamente modificado pela LF 7.803/89, de 18/7/1989, que não alterou os dispositivos citados, e pela MP 2.166-67/01, de 24/8/2001, que não se referiu às “áreas”, quando de fato se determinou na redação dada ao artigo 44 a formação ou recomposição da reserva legal, que a doutrina e a jurisprudência estenderam à vegetação protegida do artigo 2º. A “área” (e não as “florestas” ou “vegetação”) é mencionada pela primeira vez no parágrafo 3º do artigo 16 da LF 4.771/65, acrescentado pela LF 7.803/89, e depois no artigo 3º da Resolução Conama 303/02, de 20/3/2002, e é assim denominada na Seção I, artigo 4º e seguintes, da LF 12.651/12.

Pode-se concluir que a lei protegia a vegetação até 2001 e as áreas após a MP 2.166-67/01. A definição é relevante, pois se for essa a interpretação correta inexistia impedimento à intervenção em áreas consideradas de preservação permanente, se naquela ocasião inexistia vegetação a ser protegida; nem proteção após 2001 à vegetação situada em outros locais.

No entanto, outra interpretação foi dada pelo Superior Tribunal de Justiça desde caso pioneiro julgado em 2009 ao analisar a proteção da restinga, de que transcrevo em parte o voto subscrito pelo ministro Herman Benjamin:

O Código Florestal, embora se refira a ‘áreas’ em vários de seus dispositivos, a rigor tem como objetivo dorsal, expressado logo em seu art. 1º, a proteção das ‘florestas existentes em território nacional e as demais formas de vegetação’. […] Percebe-se, então, que se trata de lei (e de normas destinadas a lhe dar concretude, editadas pelo CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente e por outros órgãos federais, estaduais e municipais) que não pretende resguardar, primordialmente e preponderantemente, acidentes geográficos ou geomorfológicos específicos […] O intuito central desse microssistema normativo é, em tudo e por tudo, tutelar as características botânicas das várias faces da biodiversidade florística brasileira, ou seja, a vegetação nativa existente no território nacional. A restinga (ou vegetação de restinga, dá no mesmo) é uma dessas fitofisionomias. […] Nessa linha de raciocínio, o art. 2º ‘f’ do Código Florestal [LF nº 4.771/65] protege não o acidente topográfico, e sim a fisionomia botânica denominada vegetação de restinga, esteja ela onde estiver. […]

Em síntese, à luz desse conjunto normativo complexo – que evolui com o próprio conhecimento sobre os ecossistemas incorporados no sentido atual do vocábulo, o natural dinamismo do Direito Ambiental e as necessidades crescentes de protege-la –, a restinga é caracterizada por um conjunto de traços identificadores: a) localização em depósito arenoso, praias, cordões arenosos, dunas e depressões, que pode incluir, como forma de garantir a proteção do todo, também florestas de transição restinga-encosta; b) ocorrência em linha paralela à costa, daí a influência marinha; c) povoamento por comunidades edáficas; d) cobertura vegetal em mosaico, estrato herbáceo, arbustivo e arbóreo, este último mais interiorizado. Onde essas características, dentre outras, listadas pela legislação se fizerem presentes, de restinga se cuidará para fins de proteção como APP. […] (Wolfgang Arndt Schrader e outro vs Ministério Público Federal, REsp nº 945.898-SC, STJ, 2ª Turma, 24-11-2009, Rel. Eliana Calmon. A transcrição é do voto do Min. Herman Benjamin). No mesmo sentido: (Ministério Público vs Aucelita Souza de Freitas, REsp nº 1.344.525-SC, STJ, 2ª Turma, 25-8-2015, Rel. Herman Benjamin). No mesmo sentido: Ministério Público v. Nilton José de Souza Moreira, REsp nº 1.298.094-SC, 2ª Turma, 15-12-2015, Rel. Humberto Martins, deram provimento ao recurso; Jamil Cabral vs Ministério Público Federal, União e IBAMA, REsp nº 1.462.208-SC, STJ, 2ª Turma, 11-11-2014, Rel. Humberto Martins, negaram provimento ao recurso.

Embora cuidando de restinga, tais decisões desvinculam a vegetação da área descrita e reabrem, de certo modo, a discussão antes encerrada: a lei protege a vegetação descrita onde estiver ou a vegetação existente nas áreas descritas na lei? Esse entendimento deve ficar restrito à restinga e suas peculiaridades, ou pode ou deve ser aplicado às demais áreas de preservação permanente, cada uma com sua vegetação característica? Continua protegida a área (com a consequente obrigação de recompor a vegetação) mesmo se ali nunca houve a vegetação respectiva? São questões que recomendam a cuidadosa análise do caso concreto e suas peculiaridades, que nunca se repetem.

 

*Ricardo Cintra Torres de Carvalho é desembargador do TJ-SP.

Fonte: Conjur

 


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