TORNANDO QUADRADA A ECONOMIA CIRCULAR II

Decreto Federal 10.240 de 2020 atropela regulação e pode reduzir logística reversa de eletro-eletrônicos a mera reciclagem de atividades burocráticas

 

circulo-quadrado

 

Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*

Em cerimônia no Palácio do Planalto, instituindo a agenda ambiental urbana, o Presidente Jair Bolsonaro, na presença do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, demais quadros do primeiro escalão do gabinete presidencial e convidados, assinou o Decreto 10.240, de 12 de fevereiro de 2020, que regulamenta o inciso VI do caput do art. 33 e o art. 56 da Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010 – Política Nacional de Resíduos Sólidos e complementa o Decreto nº 9.177, de 23 de outubro de 2017, quanto à implementação de sistema de logística reversa de produtos eletroeletrônicos e seus componentes de uso doméstico.

O presidente, contudo, tencionando dar um ponta-pé inicial na ainda travada logística reversa do setor, acabou chutando a bola errada. O decreto, de fato, é absolutamente inoperante. Gera uma burocracia adicional e atropela a regulação que já estava em construção no precário sistema de regulação da economia circular.

Este artigo adota o nome de “Tornando Quadrada a Economia Circular II”, porque já há outro artigo com o mesmo nome, criticando a resolução de diretoria da CETESB, sobre acordos setoriais, igualmente difícil de rodar…

Chovendo no molhado e derrapando na pista

A iniciativa regulamentar é redundante, estabeleceu um corpo de normas que já estavam sendo baixadas por resolução administrativa, suportadas por outro decreto que se encontra em vigor e sequer foi mencionado neste último dispositivo.

Com efeito, o artigo 56 da Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, mencionado no decreto de Bolsonaro, determina que a logística reversa relativa aos produtos eletroeletrônicos e lâmpadas fluorescentes será implementada progressivamente, segundo cronograma estabelecido em regulamento. Já o Decreto 9.177 de 2017 – que o ato presidencial informa complementar, assegura isonomia na fiscalização e no cumprimento das obrigações imputadas aos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de produtos (e embalagens) sujeitos à logística reversa – portanto, obrigados a apresentar planos visando internalizar os custos ambientais nos termos da Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Nesse sentido, o decreto 10.240/2020 buscaria a estruturação e a implementação do sistema, criando um Grupo de Acompanhamento e Performance para elaborar um instrumento de governança, impor metas e acompanhar o esforço legal de implantação, uma estrutura de cadastramento de prestadores de serviços para todo o esquema e uma espécie de “encilhamento” das entidades gestoras (seriam várias?) da logística.

Ocorre que o sistema de logística reversa já possui um gerador importante de diretrizes, que é o Comitê Orientador para Implementação de Sistemas de Logística Reversa – CORI.

O CORI foi instituído pelo Decreto Federal nº 7.404/2010, que regulamenta a PNRS, com a finalidade de orientar, entre outras atribuições, a implementação de sistemas de logística reversa. O instituto surgiu para preencher a ausência de uma agência reguladora e de um sistema nacional de resíduos sólidos que consolidasse a economia circular no Brasil.

Com efeito, após um longo e tenebroso inverso lulopetista, o CORI, a partir de 2017, finalmente passou a regular o sistema, baixando histórica deliberação na gestão de Michel Temer, que universalizou a logística reversa.

Assim foi que Deliberação CORI 11/2017 estipulou diretrizes gerais da implementação dos sistemas de logística reversa e estabeleceu a interação entre logística reversa e planos de gerenciamento de resíduos.

Foi essa Deliberação que reconheceu finalmente a necessidade de inserção das ENTIDADES GESTORAS DE RESÍDUOS, outra figura ausente na Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos, destinando-as à operar os sistemas de logística reversa. Ela também conferiu efeito vinculante aos acordos setoriais, estipulando metas, cronogramas e acompanhamento da implementação dos sistemas de logística reversa, assim como a divulgação deles – tornando a entidade gestora um organismo para muito além de mera “corretora de resíduos”.

Note-se que esse cuidado de não confundir entidades gestoras com corretagem de resíduos, contrariava as associações de classe nos acordos setoriais que até então estavam elaborando com claudicantes governos estaduais e federal – tudo “para inglês ver”.

A deliberação CORI, assim, finalmente resgatava a figura das entidades gestoras e as moralizava – evitando as lavanderias fiscais que já se observavam nos convênios com cooperativas de catadores e outros expedientes vestidos com roupagem ativista inseridos na Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Essas medidas de regulação precederam o Decreto 9.177/2017 – e foram, finalmente, por este marco regulamentar efetivadas.

Com o novo decreto, no entanto, a derrapagem na curva jogou por inércia as entidades gestoras na piscina dos agentes vinculados à geração, tornando-as reféns, novamente, da corretagem.

Atropelando o sistema

Ocorre que o novo decreto simplesmente ignorou todo esse patrimônio legal em vigor.

A pretexto de “complementar” o novo regulamento trombou de frente com o sistema em execução, e em plena fase de implementação. Confundiu papéis, sobrepôs instituições, duplicou atribuições e baixou normas contraditórias que não só devem atrair a atenção das autoridades fiscais brasileiras, como até mesmo a atenção da Comissão Administrativa de Defesa da Economia – CADE – tamanha a interferência governamental no mercado de destinação dos resíduos, embutida no decreto.

A ignorância completa do sistema de logística reversa em implantação anteriormente à norma baixada agora, transparece em vários momentos – sendo o mais grave este abaixo destacado totalmente contrário ao Decreto 7.404 de 2010 – sequer mencionado na nova norma ainda que fosse para revogá-lo, senão vejamos:

a) Reza do artigo 18 do Decreto 7.404/2010:

“Art. 18. Os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes dos produtos referidos nos incisos II, III, V e VI do art. 33 da Lei nº 12.305, de 2010, bem como dos produtos e embalagens referidos nos incisos I e IV e no § 1o do art. 33 daquela Lei, deverão estruturar e implementar sistemas de logística reversa, mediante o retorno dos produtos e embalagens após o uso pelo consumidor.

§ 1o Na implementação e operacionalização do sistema de logística reversa poderão ser adotados procedimentos de compra de produtos ou embalagens usadas e instituídos postos de entrega de resíduos reutilizáveis e recicláveis, devendo ser priorizada, especialmente no caso de embalagens pós-consumo, a participação de cooperativas ou outras formas de associações de catadores de materiais recicláveis ou reutilizáveis.
§ 2o Para o cumprimento do disposto no caput, os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes ficam responsáveis pela realização da logística reversa no limite da proporção dos produtos que colocarem no mercado interno, conforme metas progressivas, intermediárias e finais, estabelecidas no instrumento que determinar a implementação da logística reversa.

b) Reza, por sua vez, o Decreto 10.240/2020:

“art. 10 – É vedada a comercialização, a doação, a transferência ou outra ação de destinação dos produtos eletroeletrônicos descartados ou armazenados nos pontos de recebimento ou nos pontos de consolidação a terceiros não participantes do sistema de logística reversa de que trata este Decreto.

Art. 11. Não haverá remuneração, ressarcimento ou pagamento aos consumidores que efetuarem a entrega dos produtos eletroeletrônicos nos pontos de recebimento, exceto a adoção de mecanismos de incentivos pelas empresas ou pelas entidades gestoras.”

Com efeito, criou-se um sistema de oligopólio-oligopsônio do material descartado, que faria corar o próprio Ministro Paulo Guedes e fazer pular de satisfação do petista militante da esquina… embora aparentemente a ideia da proibição seja inibir a atividade das próprias cooperativas ou o desvio do material entregue nos pontos de recolhimento.

O fato é que a responsabilidade compartilhada brasileira se difere da responsabilidade alargada européia, exatamente pelo fato de não permitir apropriação do produto pelo gerador no pós-consumo, como se o descarte lhe restituísse a propriedade. Nada disso.

Essa sutileza legal retira a possibilidade de “monopólio” sobre o resíduo, pretendida pelo novo decreto – desde já retirando qualquer outra possibilidade de mecanismo de retribuição econômica ou de incentivo estabelecido pelos operadores do sistema, dentre eles a possibilidade de utilização do resíduo – incluso seu recondicionamento para novo uso – por meio do comércio de varejo de equipamentos usados.

Essa supressão de alternativas, condicionadas doravante ao que for decidido oficialmente, simplesmente MATA o mercado e transforma o sistema em um cartório proto-cartelizado.

Sai a regulação, entra a auto-regulação cartorial

O próprio sistema de “prévia inscrição” , de obrigações ao consumidor final para além do disposto na estrutura de responsabilidade compartilhada estabelecida na lei e na claríssima desvalorização do material descartado em prol do pool de geradores inseridos na logística reversa – envolve profunda distorção na economia de mercado e tentativa clara de suprimir a livre iniciativa e a livre concorrência na economia circular – tornando-a, literalmente, quadrada.

A substituição do CORI por um comitê de performance, claramente substitui a regulação pública por um sistema de autoregulação direcionado a cartéis. Esse sistema não resolverá qualquer conflito – pelo contrário, tem forte potencial de gerar conflitos.

Torna-se claro que será uma espécie de autorregulação cartorializada pelos cartéis.

Melhor recolher e produzir outro

Não se pode deixar de notar o uso impreciso de terminologia disposta legalmente, como é o caso do disposto no artigo 42 do Decreto – capaz de gerar inúmeros conflitos tão somente por isso.

Reza a norma:

“Art. 42. O plano de comunicação conterá, no mínimo:
I – a destinação final ambientalmente adequada de produtos eletroeletrônicos de que trata este Decreto e suas embalagens e a vedação de sua disposição juntamente com outros resíduos sólidos e rejeitos;” (grifamos)

Com efeito, há pareceres contratados no governo federal destrinchando as diferenças entre os conceitos expressos legalmente, na PNRS, de destinação final ambientalmente adequada dos resíduos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos. No entanto, o decreto mistura tudo como se fosse um antigo caminhão de lixo, “criando” uma destinação final ambientalmente adequada de produtos eletroeletrônicos (e não dos resíduos…) e ainda veta sua “disposição” juntamente com outros “resíduos sólidos e rejeitos” (sic).

Afinal… é de se perguntar o que isso quer dizer – que não a clara intenção de confundir resíduos com produtos para apropriação clara do descarte.

O decreto, portanto, retira proporções e submete a regulação do sistema a um mecanismo mandatório centralizado no Ministério do Meio Ambiente e no grupo de performance – cartelizado. Com isso privilegia um balcão de acordos e prejudica o mercado.

A falta de balanço de massa e cálculo de fluxo de materiais – temas caros à engenharia de produção e à logística, se já não eram muito claros na estrutura anterior, com esse decreto desaparecem. E se há metas a serem estabelecidas por gerador, independente de envolver municípios, indústrias, comércio e importadores, estas metas devem envolver o balanço de massa, a tonelagem e o fluxo dos materiais utilizados na produção.

Como se viu, o Decreto apresenta falhas clamorosas de técnica legislativa, ignora a estrutura aposta anteriormente sem sequer tratar de revogá-la expressamente e, não há como negar, deixa passar uma certa intenção de apropriação econômica da logística reversa do setor sem compreender a economia nele existente.

Há muito mais a ser dito. Mas o que acima já se expôs recomenda fortemente a retirada do Decreto, para completa reformulação.

Hora de recolher a norma, repristinar o status anterior e iniciar um processo de discussão mais sério e objetivo, que não exponha o Presidente da República.

 

afpp18*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”. Como consultor, elaborou estudo para o Banco Mundial sobre Resíduos Sólidos Urbanos no Brasil e foi o consultor da Presidência da República, via PNUD, para estabelecer critérios de destinação de resíduos e disposição de rejeitos no Plano Nacional de Resíduos Sólidos. Foi integrante da equipe que elaborou o plano de transição da gestão ambiental para o governo Bolsonaro.

 

Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 20/02/2020

 


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